quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Tragédia e espiritualidade / Tragedy and spirituality / La tragedia y la espiritualidad

Nós nos acostumamos a chamar os acontecimentos com dimensões catastróficas, dolorosos, acompanhados de muitas vítimas, diante dos quais nos sentimos impotentes, de tragédia. Na verdade, a palavra tragédia tem sua origem na Grécia antiga. Quer dizer literalmente “canto dos bodes”, talvez uma referência direta a Dionísio, o deus grego meio homem, meio bode, ou ao gemido desses animais quando vão para o sacrifício. O fato é que o trágico está ligado ao aniquilamento do ser, quando as coisas perdem sentido, quando a esperança se vai. Uma filosofia do trágico tem a ver com a reflexão sobre aquilo que provoca a calamidade e os resultados sobre a vida humana.
A tragédia se constituiu num gênero de drama entre os gregos. Por volta do século IV a.C., havia festivais e concursos para a apresentação dessas peças teatrais. Alguns autores se tornaram famosos, como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Algumas de suas peças foram perpetuadas no tempo. Eram frutos de uma poética invejável, desenovolvida desde tempos remotos, com cânticos – ditirambos – dedicados a Dionísio, divindade grega ligada às orgias. Normalmente, representavam um conflito entre o herói e uma força superior, um esforço de superação de si e o desafio diante do sagrado, através do autoconhecimento.
A tragédia tornou-se uma inspiração para a filosofia platônica. Mas foi Aristóteles que desenvolveu um saber teórico a respeito dessa forma de arte, vendo nas representações o seu efeito catártico, a purgação da emoção dos espectadores. Para ele, a tragédia era uma forma elegante de tratar dos atos de grandeza do herói. Uma representação da vida – mimesis – que desperta a compaixão e o horror diante das terríveis dilacerações do herói trágico e o infortúnio que o destino lhe reserva. Com isso, o público deveria passar por uma espécie de exorcismo coletivo de suas paixões – catarse.
A filosofia estoica também foi influenciada pela tragédia, que serviu para demonstrar os efeitos que a paixão humana provoca e a necessidade do cuidado de si. Sêneca se referiu a várias peças para tratar do desespero humano, principalmente daqueles que se deixam guiar por suas paixões, sem lhes impor limites.
Foi com a influência cristã que a tragédia perdeu sua força. Com a ascensão do cristianismo, a principal representação passou a ser a do drama da cruz, a fim de levar o homem à experiência do encontro com Deus. Nem mesmo o Novo Testamento emprega essa palavra. Foi só na Modernidade que se desenvolveu uma reflexão sobre o trágico. Até o século XVIII, a tragédia foi estudada como arte poética a partir da concepção aristotélica. Mas foi com Schelling, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche que se pode elaborar uma filosofia do trágico, tendo como base o conteúdo da tragédia.
É possível perceber um aspecto ontológico na tragédia, uma vez que está relacionada com o ser em si, com a essência de nossas contradições e o conflito que é inerente ao homem. Com a Modernidade, principalmente no século XIX, passou-se a construir uma visão do trágico que faz parte de uma visão do mundo. Nietzsche trabalhou a questão do trágico e da tragédia ao deslocar o tema do campo poético para a filosofia como forma de pensamento que elabora uma visão trágica do mundo. Ele mesmo afirmou: “Sou o primeiro filósofo trágico; os próprios gregos ainda foram moralistas.”
Para Nietzsche, a visão trágica do mundo se constitui numa alternativa ética, uma afirmação integral da vida para além do bem e do mal. A natureza humana comporta em si mesma dois impulsos, os quais ele chama de apolíneo e dionisíaco, como ideais oníricos. O apolíneo tem a ver com a contemplação do mundo imaginado e sonhado como perfeita harmonia, de beleza. O dionisíaco, por sua vez, corresponde a uma exaltação do trágico, uma referência ao modo como Dionísio renasce da destruição. Segundo o mito, Dionísio foi esquartejado pelos Titãs após nascer. Atena resgatou o seu coração e o entregou a Zeus, seu pai, que o engoliu e o fez nascer de novo. O impulso dionisíaco é o que nos devolve a nossa natureza e nos leva ao aniquilamento do sonho, para dar lugar a um novo sonho. É a concepção ativa do devir. Essa é a ideia do trágico. Nem mesmo um herói é capaz de escapar desse conflito entre o que se quer e o que se pode. Por isso que, segundo Nietzsche, a tragédia nos deixa um “consolo metafísico [...] de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indescritivelmente poderosa, e cheia de alegria.”
A calamidade é tragédia porque ela nos lembra quem somos e nos devolve à nossa realidade. O mundo de beleza e harmonia construído pelo homem não é seguro. Nem mesmo o mais poderoso é capaz de resistir aos efeitos desastrosos de uma catástrofe. E é isso que nos leva a indagar quem somos e o que fazemos. Ela nos ajuda a pensar em nós mesmos e a buscar um cuidado de si. O trágico também nos ajuda a pensar no outro, a sentir a dor do outro e, com isso, purgar a nossa própria dor. É o que nos leva a ser solidários e somar forças para ajudar o outro na sua superação, porque também é a superação de nós mesmos. O trágico nos remete ainda a Deus, quando nos perguntamos por ele e buscamos nele forças para superar a perda e o sofrimento. É o que lembra que somos criaturas e não criador, que somos homens e não deuses, que temos um pai amoroso pronto para nos acolher com amor, sarar nossas feridas e nos dar forças para recomeçar.
No dia da calamidade, o convite dos Salmos ainda parece ser o melhor caminho: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; serei exaltado entre as nações; serei exaltado sobre a terra.” Salmos 46.10.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Solidariedade e esperança em meio ao caos / Solidarity and hope in the chaos / La solidaridad y la esperanza en medio del caos

Passei dois dias em Nova Friburgo após a tragédia que se abateu sobre a cidade, juntamente com Solange (Veja fotos no site da Orla Oceânica >>). Já se passavam seis dias do temporal e a buscar de corpos estava ainda longe de acabar. Até aquele momento, aquilo que tem sido considerado o maior acidente brasileiro ultrapassava a marca de 700 mortos em toda a região serrana. A decisão de ir foi rápida. Pastor Carlito me ligou no sábado à noite perguntado pela minha disponibilidade. Eu, que já tinha convocado os irmãos para levantar doações, coloquei-me a serviço prontamente.
O encontro foi combinado para segunda-feira, pela manhã, num mercado atacadista que fica no caminho para lá. Um grupo saiu da Primeira Igreja Batista de São José dos Campos para fazer o levantamento das necessidades a fim de que a igreja providenciasse as ações futuras. Pastor Tom, Max, Hyper e Miguel saíram bem cedo de sua cidade, enfrentaram a estrada para o Rio e chegaram em Niterói por volta das 11 horas. No mercado, o primeiro sinal de que Deus estava conosco. Nossa conversa sobre o que levar despertou a curiosidade de Carlos e da Suelita, moradores das redondezas, que vieram para fazer alguma coisa pelas vítimas das enchentes, mesmo sem nunca terem estado lá. Ouviram a conversa e perguntaram se podiam ajudar. Eles haviam comprado leite em pó, copos descartáveis e material de higiene pessoal. Juntamos aos alimentos que compramos, trocamos informações de contato, nos despedimos e seguimos para Nova Friburgo.
A viagem foi cercada de expectativa, não sabíamos o que nos esperava. Partimos em dois carros. Paramos em um posto para abastecer com o máximo de combustível e seguir para lá. Meu carro estava abarrotado de donativos, mal sobrava espaço para mim e Solange. Os irmãos da Orla Oceânica me surpreenderam com tanta generosidade. O Fernandes, sua esposa Carla e suas meninas Luísa e Joana, saíram de carro em busca de mais coisa. Até o Emilson e a esposa, que vieram para nos visitar pela manhã, se envolveram. Somos uma igreja bem pequena e iniciante, com um grupo de pouco mais de 15 pessoas. Isso para mim foi fantástico.
Nova Friburgo fica a duas horas de carro de Niterói. Chegamos lá por volta das três da tarde e o cenário foi o mesmo por toda a serra. Muita queda de barreira e desvios em meia pista. Ali também já dava para sentir o tráfego de caminhões de donativos que chegam de outras igrejas e de veículos pesados enviados por algumas prefeituras vizinhas para ajudar na limpeza. Quando nos aproximamos do centro da cidade, ficamos preocupados ao ver pessoas usando máscaras para se protegerem da poeira que havia. A gente já podia ver o que nos esperava: lixo e entulho por toda parte, ruas tomadas de lama e muitos pontos de deslizamento por todo lado.
A primeira parada foi na Igreja Batista Central. Encontramos uma igreja mobilizada para atender às pessoas que vinham em busca de água, roupas e alimentos. Descarregamos o meu carro ali. Só ficaram as fraldas descartáveis, que já tinham endereço certo. Além de levar os donativos – que não eram muitos diante de tanta carência –, nossa missão era de dar uma palavra de consolo e encorajamento às equipes de voluntários que estavam nas igrejas prestando auxílios às vítimas da enchente. Por isso que parar ali logo no começo foi importante para nós. Era um local estratégico para a logística da distribuição das doações. Ouvimos muitas histórias de perda e dor. Encontramos com o pastor Daniel, o executivo das igrejas batistas da região, que trabalhava incansavelmente para dar conta dos pedidos que chegavam a todo instante.
Oramos com aqueles irmãos e seguimos para a Comunidade Cristã, uma grande igreja que concentrou uma quantidade maior de doações de alimento e que, por causa disso, abastecia os helicópteros que levavam cestas básicas para as localidades sem acesso. Eles estavam ao lado de uma escola que servia de abrigo e ainda acolhiam 70 pessoas que perderam suas casas. A pastora Lyane nos informou de como estava o ânimo das equipes de voluntários depois de seis dias de luta e que a única coisa que lhes servia de ânimo era a esperança de que Deus iria proporcionar dias melhores. Reunimos a todos ali, o pastor Tom e eu demos uma palavra de encorajamento e o Miguel orou, com todos de mãos dadas. A esposa do pastor Herdy nos abraçou chorando, disse-nos que era a primeira vez, desde o início da tragédia, que alguém chegava até eles para orar e lhes dar uma palavra de ânimo. Ao sair, chegou mais um caminhão com doações e logo eu e toda a equipe fizemos uma corrente de solidariedade para descarregar os donativos.
Seguimos para o bairro de São Geraldo, que foi muito afetado pelas chuvas, onde se encontra a Quinta Igreja Batista. O pastor Alex tinha acabado de sair para mais atendimentos. Estava ali a irmã Mirian, liderando os voluntários que preparavam as cestas básicas. Ela nos disse que naquele momento as coisas estavam mais calmas. Nos primeiros dias, a igreja teve que servir como lugar para receber os corpos, ao mesmo tempo em que acolhia muitos desabrigados e os donativos que conseguiam chegar. Mesmo em meio ao caos, eles conseguiram colocar ordem até a chegada dos bombeiros, dois dias depois, que se surpreenderam com a forma de organização. A ajuda foi distribuída para outros pontos da localidade. Os desabrigados foram para uma igreja presbiteriana e a farmácia foi para uma igreja pentecostal. Na igreja batista ficou a distribuição dos donativos, cujo exemplo de organização foi levado para outros postos de distribuição. Nos reunimos para orar depois de ouvir tantas histórias de perdas. Cada pessoa que estava ali era um exemplo vivo de fé e coragem. Foi nessa hora que Mirian chorou e nos disse que ela também tinha perdido a sua casa e que estava ali por um milagre, com toda a sua família salva. Nossa única doação ali foram as fraldas descartáveis. Ao retornar para o centro da cidade, fomos informados que o caminho estava bloqueado. Moradores de uma comunidade carente em risco fecharam um ponto da estrada que ameaçava desabar. Mesmo assim seguimos viagem. No ponto onde havia sido feito o bloqueio, a polícia já tinha chegado fortemente armada. Um clima pesado de tensão tomou conta, mas conseguimos passar com tranquilidade sob a orientação da polícia. O lanche foi na charmosa padaria da cidade, que não tinha quase nada para vender. Retornamos à Igreja Batista Central e ali passamos a noite.
No dia seguinte, fomos à Segunda Igreja Batista onde funcionava o polo de distribuição das igrejas. Em conversa com o pastor Godói, uma ideia prevaleceu: o problema maior não são mais os desabrigados de hoje, mas o resultado social da tragédia. Alguma coisa já teria que ser pensada para as famílias que em poucos dias poderiam retornar para suas casas e para os pequenos empreendedores que perderam seus equipamentos de confecção. Nova Friburgo é um centro produtor de moda íntima. De cada quatro peças de roupa consumidas no Brasil, uma vem de lá. E a maioria é fabricada por autônomos. Muitos deles perderam seu meio de sustento. O que fazer? Quem sabe a formação de um fundo de amparo ao pequeno empreendedor? Só Deus para dar a direção.
Visitamos em seguida o bairro de Nova Suíça, onde se encontra a igreja do pastor Daniel. Ali a realidade é outra. A chuva não provocou grandes estragos, mas ali estava o resultado social da tragédia. Subimos de carro até uma comunidade controlada pelo tráfico. Chegamos até a casa da irmã que abriga uma frente missionária da igreja. Logo um pequeno grupo de pessoas nos cercou pensando que tínhamos donativos, mas entramos para a casa da irmã para conversar. As histórias lembravam o Ensaio sobre a cegueira, de Saramago. Soubemos que tiveram a ousadia de parar um caminhão do exército para saquear os donativos. Oramos e Solange deixou balas e biscoitos com a irmã para o lanche servido à tarde para as crianças do lugar. Ao descermos o morro, a polícia vinha escoltando uma pick-up com doação de água mineral.
Dali fomos para Sumidouro, cidade distante uns 70 quilômetros. Minha preocupação era encontrar com o pastor Benilton. Ele não estava, mas fomos recebidos pelo irmão Calil, presidente da Câmara Municipal. A chuva tinha deixado alguns mortos na zona rural e isolado algumas comunidades. O acesso era feito por helicópteros que faziam pouso e decolagem constantemente a partir do estádio municipal, próximo da igreja batista. Fizemos nossa refeição improvisada, oramos e voltamos para Nova Friburgo. A equipe ficou mais um pouco na Comunidade Cristã para passar a noite e ajudar no que fosse necessário. Eu e Solange voltamos para casa. Era tarde quando saímos dali, tínhamos o coração quebrantado por tanta dor que vimos e ouvimos. Para nós, resta apenas a certeza de que Deus está no controle dando forças para seguir adiante.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SOS Região Serrana

Vamos nos envolver com a campanha de ajuda para as vítimas das enchentes na região serrana do Estado do Rio. Na Orla Oceânica, nesta sexta, durante todo o dia, e no domingo, durante as celebrações, recolheremos doações para encaminhar para nossos irmãos daquela região.

  • Colchonetes
  • Água mineral
  • Alimentos não perecíveis
  • Material de higiene e limpeza
  • Roupas de cama, banho e pessoal (em bom estado)
  • Dinheiro

Local de coleta na região oceânica de Niterói:
Rua Dr. Cornélio de Mello Jr., 31
Piratininga - Niterói - RJ
Telefone: (21) 2619-3996
Estamos apoiando a mobilização dos batistas do Estado do Rio de Janeiro
As ofertas em dinheiro podem ser enviadas diretamente para a conta sugerida pela CBF:
Bradesco - Agência 2376 - Conta-corrente: 12522-9 (fazer depósito identificado)


Desastre natural e tragédia humana: reflexões sobre o temporal na região serrana do Rio / Natural disaster and human tragedy / Desastres naturales

Mais uma vez assisto bem de perto à devastação provocada pelas chuvas envolvendo pessoas e locais que são parte da minha história. Passei doze anos de ação pastoral em Nova Friburgo e participei, à época, do projeto de plantação de uma igreja batista em Teresópolis. Ali estão amigos e pessoas com quem convivi e sonhei com um futuro melhor.
O que aconteceu neste verão na região serrana do Rio, infelizmente, é mais uma tragédia anunciada. Lembro de 1996, quando um forte temporal destruiu a cidade. Naquela ocasião, já se dizia da necessidade de obras de prevenção e de uma política de ocupação do solo que minimizasse os efeitos dos fortes temporais de verão. Ao que tudo indica, pouco se fez em relação ao necessário.
Tragédias como essa, semelhante ao que aconteceu recentemente em Niterói e Angra dos Reis – como também os terremotos no Chile e no Haiti –, estão intimamente relacionados à maneira como a humanidade vem construindo a sua relação com o meio ambiente. Já não se pode mais dizer que são acidentes naturais. A justificativa de que choveu três vezes mais acima do esperado é muito pouco. Desculpas como as do prefeito e governador de São Paulo, por causa dos mesmos efeitos da chuva por lá neste verão, já não colam mais.
A realidade é que o que se tem chamado de tragédia natural não passa de consequência dos movimentos da natureza, cuja força e ação seguem uma lei que lhe é própria. É natural da região tropical de mata atlântica ter fortes temporais. É da natureza da região ter formação rochosa com uma camada de terra que desliza facilmente. O que não é natural é a política de ocupação do solo associada a um programa de prevenção de acidentes que não contemplam esses fatores naturais. O resultado não pode ser outro: deslizamento de terra e centena de mortos.
Essa tragédia é humana e, por isso mesmo, histórica. Ela diz respeito à maneira como nós concebemos a vida social e a distribuição da terra. Se olharmos para Nova Friburgo, ali vive um povo desde o começo do século XIX que bravamente saiu da Europa em busca de novas chances. Instalaram-se ali e construíram uma grande cidade, a despeito da distância e das dificuldades geológicas. Olhar para esse cenário de destruição é de uma tristeza sem igual.
Já se diz que o Brasil tem que enfrentar suas tempestades como alguns países têm aprendido a enfrentar terremotos, furacões e tsunamis, que não são acidentes naturais, mas forças da natureza. Concordo com isso. O problema é que esse aprendizado é penoso, envolve adoção de políticas públicas impopulares e realização de obras de infraestrutura de pouca visibilidade. Acho que temos mesmo é que preparar o coração para conviver com mais tragédias humanas e encontrar forças para a solidariedade. Queira Deus que eu esteja errado.

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