segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Trindade / Trinity / Trinidad

A Trindade é uma noção essencialmente cristã. A concepção de um Deus único que se revela em três personalidades distintas, que se manifestam em unidade, faz parte de um dos dogmas cuja definição provocou mais controvérsias e que ainda comporta investigações profundas. Santo Agostinho chegou a reconhecer a dificuldade de compreender essa doutrina e afirmou que são raras as pessoas que sabem o que dizem com respeito a esse assunto, embora seja um assunto corrente para a teologia e o pensamento cristãos. Outros teólogos também concordam com essa dificuldade. Millard Erickson, teólogo protestante norte-americano, registrou: “Tente explicá-la, e perderá a cabeça; mas tente negá-la, e perderá a alma.” O que pode ser considerado simplista demais e não contribui para uma melhor compreensão sobre o assunto. É preferível dizer como o compositor brasileiro Renato Russo: “Quem me dera, ao menos uma vez, entender como um só Deus ao mesmo tempo é três.”
A fórmula adotada pela ortodoxia que define a ideia de Trindade foi aprovada pelo concílio de Constantinopla no ano de 381 e afirma que Deus é “uma substância em três pessoas”. Ainda em Santo Agostinho, em sua obra De trinitate, encontramos uma tentativa de explicar a natureza trinitária de Deus, ao fazer analogias com a condição humana. Entendia ele que pelo fato de a humanidade ser feita à imagem de Deus, que é trino, é razoável encontrar em nós reflexos, ainda que tênues, da Trindade.
Jürgen Moltmann reconhece a dificuldade de se definir a pessoa de Deus a partir da Trindade. Afinal, se já é difícil explicar a existência de Deus, quanto mais tentar entendê-la como trinitária. Para muitos, isso não passa de especulação teológica desnecessária para a afirmação da fé. Talvez Melanchton tivesse razão: “Nós adoramos os mistérios de Deus. Isso é muito mais correto do que especular sobre eles.”
A fé cristã é, acima de tudo, monoteísta. Mas não ignora o fato de que Deus se revela como Pai, Filho e Espírito Santo. A Bíblia é cheia de expressões dessa forma de Deus se manifestar. Sendo assim, a maneira que a teologia cristã tem encontrado para se referir a Deus é afirmar que ele é o Deus uno e trino.
Moltmann procura entender a Trindade em sua abordagem a respeito da criação a partir de uma perspectiva teológica. A primeira tentativa envolve a questão sobre a contingentia mundi. A criação de Deus foi necessária? Ele reconhece em Deus seu amor autocomunicativo, que não deseja comunicar-se apenas consigo mesmo, mas também com o seu outro. A relação de amor do Pai com o Filho está vinculada à ideia da criação do mundo. O logos é um outro modo de ser do Filho, por meio do qual Deus cria o mundo e o reserva para a sua encarnação e a realização do seu Reino.
A segunda tentativa envolve a condição íntima de Deus que se abre a um para fora de si, na criação, envolvendo a encarnação e a redenção. Existe algo que possa ser considerado exterior a Deus? Em função da ideia de uma criação a partir do caos e de um creatio ex nihil é possível compreender o agir criativo de Deus, que cria o mundo e permite que este “se forme ‘dentro dele’ e apareça”. Usando a doutrina de Isaac Luria sobre o zimzum, que afirma que a “existência do universo foi possibilitada por um processo de recolhimento em Deus”. A criação é, portanto, uma ação do recolhimento de Deus para dentro de si mesmo, um ato de humildade, um aspecto místico original do agir de Deus, muito mais uma paixão do que uma ação. Nessa perspectiva, Moltmann pode assim resumir a Trindade na criação: “O Pai cria o mundo por seu amor eterno através do Filho, visando à correspondência no tempo ao seu amor eterno na força do Espírito Santo, que interliga o que se diversifica.”

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Criação e evolução: superação do conflito entre o criacionismo e o evolucionismo / Creation and evolution / Creación y evolución

Como é possível encontrar uma relação entre as teorias da evolução e da criação? Para encontrar um caminho, quero me aproveitar dos argumentos de Gisbert Greshake, no seu livro El Dios Uno y Trino. A tese principal que ele levanta é de que a criação tem traços dinivos – e trinitários – como um dom de origem. Ele usa um conceito aristotélico para afirmar que o Deus trino realiza como ato puro, ele mesmo, sua própria vida, como eterna realização trinitária de vida a partir de si mesmo, ao passo que a criação é pura recepção do ser a partir do nada. Entretanto, uma dificuldade se encontra aí, que diz respeito à distância entre o criador e a criação, que é impossível de se transpor. Essa distância é caracterizada pelo fato de que a criação participa do ser trinitário e que ela mesmo, ao mesmo tempo, é lugar de realização do divino. Não é somente imagem. O objetivo da criação é a participação próxima e direta no “jogo” da vida de Deus.
Isso implica um processo que envolve a antecipação que movimenta a sua realização, que se dá em seu devir evolutivo e em liberdade. Esse processo, portanto, está marcado desde o seu começo e que impulsiona a sua realização plena. O resultado é que, da mesma forma que o Deus trino opera em si mesmo sua própria vida, como comunhão e comunicação, assim também a criação deve operar sua vida nela mesma, conquanto seja de maneira finita, possibilitada e sustentada pelo próprio Deus.
Nesse sentido, a criação se torna semelhante ao criador na medida em que o devir da criatura se realiza a partir de si mesmo, como ato puro, ainda que de modo inferior e limitado. Essa semelhança se dá também por um “mais além de”, na medida em que a vida divina não se realiza numa eterna inércia, mas como algo que se renova, como transbordamento e como transcendência. O devir da criatura se manifesta como reflexo desse permanente “mais além” de Deus.
É isso que possibilita que a criação colabore na sua própria realização, uma vez que não se encontra terminada como um fim em si mesma. O que isto significa: que em Deus, uma pessoa faz a mediação da vida divina à outra. De tal modo que as maiores diferenças se configuram formas de unidade, como comunhão, unidade a partir da pluralidade e pluralidade em e até a unidade.
O devir da criação tem por fim mediar a vida. Hans Urs von Balthasar afirmou que “o devir intramundano é uma cópia do acontecer eterno em Deus que, como tal, é idêntico com o ser e essência eternos”. O devir da criação se dá pela evolução, uma vez que a natureza não é algo estático, terminado em si, nem como totalidade, mas como um processo do devir interativo. Ou seja, comporta complexidades e interações.
Falar de evolução não contrária a fé, uma vez que tudo que há no universo surgiu de modo que o menos se tornou mais, como síntese de elementos e fatores presentes no anterior. Com essas unidades cada vez mais novas e complexas se formam ao mesmo tempo novas possibilidades para uma reiterada novidade.
Dois fatores, portanto, estão presentes na evolução: o que vai das formas mais simples para as formas mais complexas e o que vai da diferença para a comunhão. O fim desse processo é a evolução até a formação de uma communio. Esse processo de evolução não se dá de forma harmônica ou sem rupturas. Não aparece como necessário ou previsível. Não se realiza de acordo com um plano prefixado ou desenhado de antemão. Ele se dá na forma de auto-organização e como autossuperação, que inclui aí a noção de ensaio e erro.
A fé atua como abertura para compreensão evolutiva do mundo, que deixa o mundo continuar sendo mundo e permita que seja analisado pelas ciências naturais e humanas. Da mesma forma que é um equívoco compreender Deus pelo mesmo critério que se compreende as criaturas, não dá para se ter uma compreensão evolucionista vista em si mesma, que pode levar à noção de uma espécie como superior à outra, como um vencedor.
Greshake recorre a Karl Rahner para entender a ideia de “causa infinita, que contém previamente em si mesma como ato puro toda a realidade, pertence à ‘constituição’ da causa finita enquanto tal (‘in actu’), sem ser um momento interno dentro dela enquanto ente”. Esse acontecimento evolutivo tem traços trinitários: o Espírito é quem possibilita o mais além e a unidade, em função de sua capacidade para unidades cada vez mais elevadas e complexas; o Filho é quem, como alteridade, dá início à diferenciação e à individualidade; e o Pai é quem estabelece a criação a partir do nada, com capacidade de auto-organização.
Ele cita Karl Schmitz-Moormann: “tudo se realiza de tal maneira como se Deus esperasse que a coisas se desenvolvam, sem fazer sentir sua onipotência. [...] O amor não esmaga, não obriga. Deus, que é amor, tampouco cria, portanto, nenhuma máquina que funciona segundo leis deterministas, se não que chama ao mundo desde o nada a sua própria existência, a fim de que o mundo possa encontrar-se com ele no amor.”

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Aprender a desaprender / learn to unlearn / Aprender a desaprender

Vivemos no domínio da aprendizagem. Ensino e aprendizagem estão juntos nas grandes estruturas de educação criadas para o progresso da humanidade. Na família, a gente aprende boas maneiras, valores e princípios. Na escola, a gente aprende a falar corretamente, a usar novas tecnologias, a dominar novos conhecimentos. Na sociedade, aprendemos a respeitar as pessoas, a cumprir normas, a construir a carreira. Na igreja, a gente aprende a doutrina, a cumprir os rituais, a praticar boas ações.
Enfim, a gente se depara com um mundo em grandes transformações que nos exige novas aprendizagens, de tal modo que não dá para se falar apenas numa recepção de informações. Em um relatório para a Unesco, chegou-se à conclusão acerca dos quatro tipos fundamentais de aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser. Eu me lembro, inclusive, do que disse o deão acadêmico à época de minha conclusão do curso de Teologia: “vocês só aprenderam a aprender.”
Diante de tantos saberes e informações, penso que chegou o tempo de também aprender a desaprender. O acúmulo das coisas que aprendemos ao longo da vida e que nos são impostas como exigências acabam, de algum modo, resultando em verdadeiros entulhos que limitam a nossa percepção da riqueza que é a vida. A imposição da máxima especialização do conhecimento produz uma capacidade mínima de descobrir os valores e a beleza que há em muitos aspectos relacionados àquilo que podemos chamar de verdadeiramente humano. Temo até que precisamos de outra estrutura que nos ensine a desaprender.
Principalmente no que diz respeito à fé cristã, há muita coisa a se desaprender. O cristianismo levou séculos produzindo uma quantidade enorme de conhecimentos. Profundos e úteis a seu tempo, sem dúvida. Mas que podem limitar a nossa percepção da necessidade das pessoas de nossa geração. Dito de uma maneira mais concreta:
Precisamos urgentemente desaprender a ideia de que temos a capacidade de conhecer tudo, de ser autossuficiente, como um sujeito autônomo, dotado de vontade e livre, tal como a Modernidade nos ensinou, para aprender a ser mais dependentes de Deus.
Precisamos desaprender a imagem de um Deus paternalista e terrível, como se fosse um vigia sorrateiro, um manipulador de marionetes, alguém pronto a mandar pessoas para o inferno, como nos ensinou a cristandade, para aprender mais sobre a maneira de acolher o cuidado amoroso de Deus por nós.
Precisamos desaprender a ideia de que Jesus foi um Deus disfarçado de homem, que sabia de tudo e que viveu sem sentir a dor humana, para aprender o mistério que envolve a pessoa de Jesus de Nazaré, que, através de sua vida toda realmente humana, revela o Filho enviado pelo Pai, como dom por meio do Espírito Santo, a fim de que possamos viver a nossa vida humana e recebermos a filiação divina.
Precisamos desaprender a ideia de que ser cristão está ligado a acreditar em verdades eternas, compreensíveis logicamente, e a praticar normas e mandamentos, para aprendermos a recuperar a alegria de viver o relacionamento pessoal com Jesus que se dá a partir do meu relacionamento com os irmãos.
Precisamos desaprender a ideia de que a fé se expressa por meio de ações mágicas, de merecimento e de troca, para aprender que ela só faz sentido a partir da expressão da Palavra que se manifesta através da vida em comunhão.
A lista poderia ser enorme, mas essas pequenas indicações já mostram o quanto é urgente aprender a desaprender para nós, cristãos.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Espiritualidade e Compaixão / Spirituality and compassion / La espiritualidad y la compasión

A compaixão é uma atitude humana frente à dor do outro. A percepção de alguém que sofre desperta sentimentos, mesmo na pessoa mais indiferente. David Hume reconheceu que ninguém é completamente indiferente à felicidade ou à miséria dos outros. Diante do sofrimento, podemos desenvolver sentimentos de simpatia ou de empatia. Ser simpático é estabelecer um vínculo com o outro. Esse sentimento pode ser comparado à piedade, a ter pena de alguém. Já a empatia é a capacidade de olhar com o olhar do outro, é sentir-se como se estivesse na mesma situação que o outro.
A compaixão, porém, não pode ser vista como um mero sentimento. É uma atitude que corresponde a um desejo de estar junto, de fazer algo, de ser solidário com aquele que sofre. A compaixão não acontece sozinha, ela se realiza através de ações. Da palavra compaixão se deriva o verbo compadecer, que é sofrer junto, “sofrer com”. Shakespeare disse que “quem sofre sozinho, sofre muito mais em seu espírito. Deixa para trás a liberdade e a alegria. Mas o espírito com muito sofrimento pode superar-se. Quando a dor tem amigos que suportam a sua companhia, quão leve e suportável a minha dor parece agora.”
Líderes mundiais já sugeriram que a compaixão deve substituir a mentalidade egoísta e individualista que tomou conta da humanidade. Há uma carência de mais compaixão no mundo. Dalai Lama, líder budista, afirmou que melhorar o mundo é melhorar os seres humanos. Para ele, a compaixão é um poder e uma característica humana.
Entretanto, só podemos compreender plenamente o sentido da compaixão a partir da vida de Jesus. Ele orientou toda a sua ação pela compaixão. A Bíblia diz que “ele andou por toda parte fazendo o bem” (Atos 10.38). Sua intenção foi de estabelecer um domínio, uma nova dinâmica, uma nova lógica que pudesse reger as relações humanas, a que ele chamou de Reino de Deus, marcado pela compaixão. Ele foi capaz de ter compaixão de multidões, assim como de se compadecer de pessoas específicas em meio a sua dor. Mas só o fez assim porque Deus estava com ele. Santo Agostinho afirmou que Deus é aquele que ama sem medida, que é capaz de cuidar de todos como se fossem um e de um como se fosse todos.
Entrar na dor do outro só é possível para alguém que já passou também pela dor. A Bíblia nos encoraja a “que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, pela consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus” (2 Coríntios 1.4 ARA). Precisamos de muita ousadia para superar a nossa ilusão de que a vida é feita de soluções mágicas e de merecimentos, de modo a enfrentar o sentido da dor. Precisamos reconhecer que a vida é marcada pelo sofrimento e que não temos as garantias de que vamos encontrar soluções para muitos deles.
Há perguntas que jamais conseguiremos responder. Há situações que nada podemos fazer. A compaixão é a atitude que nos ajuda a tirar os olhos do sofrimento e nos leva a olhar para a pessoa que sofre. É isso que pode nos levar a interceder diante Deus, dizendo: tira um pouco o fardo pesado dessa pessoa e deixa que eu a ajude. É a compaixão que nos leva a andar junto, a descobrir vida em meio ao luto, alegria em meio ao choro, felicidade em meio à tragédia. Nessa área, todos temos dificuldade e não nos planejamos para isso. Por essa razão é que queremos levantar um clamor: por favor, Deus, dá-nos mais compaixão!

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