segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Morte do Bispo Robinson Cavalcanti e esposa é uma grande perda para cristãos brasileiros/Death of Robinson Cavalcanti/La muerte de Robinson Cavalcanti

Na noite do domingo, 26 de fevereiro de 2012, faleceu tragicamente o bispo anglicano Robinson Cavalcanti e sua esposa Mirian, ambos aos 64 anos, em sua casa, na cidade de Olinda, Pernambuco. O autor do crime foi o próprio filho adotivo do casal que desferiu golpes de faca contra seus pais e depois tentou se matar. A notícia é de uma tristeza sem igual, não só pela brutalidade do acontecimento, mas por se tratar de um teólogo e pensador brasileiro dos mais notáveis. Todos que sonham com uma igreja realmente relevante para este tempo, que primam pela luta para a afirmação concreta dos sinais do Reino num mundo que aprendeu a não crer em Deus estamos tomados por um grito de lamento.
Pensando na dor que perdas como essa provocam, o salmista declarou: “Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos” (Salmos 116.15, de acordo com a versão revisada de Almeida). Versões mais contemporâneas traduzem a expressão original afirmando que Deus vê com pesar a morte dos seus santos. Eu diria mais: custa caro para Deus a morte de servos como Robinson Cavalcanti. A partida do cientista político, teólogo e religioso custa caro para o cristianismo em geral e para os brasileiros, em particular.
Essa é uma hora de luto, de pranto, de deixar doer. Essa hora de dor nos remete a algumas descobertas que não podem passar despercebidas. A morte do casal nos lembra que anjos e demônios coabitam entre nós e conosco o tempo todo, que não temos o controle sobre isso, nem mesmo a garantia de que seremos capazes de evitar o mal que permeia nossas relações. O jovem que agiu de forma cruel contra quem lhe deu acolhida é o retrato do engano que essa sociedade ajudou a construir, que se baseia na lógica do mais esperto, na defesa de um individualismo inconsequente, que confunde liberdade com arrogância, felicidade com prazer, direito com falta de limites.
Mas a hora da dor nos remete também à necessidade de superação, de se ampliar horizontes, de permitir que o Espírito Consolador nos apascente. Aquele que cuida de nós como filhos amados, por quem Jesus se fez Salvador e Senhor, é o único que pode enxugar lágrimas e apontar caminhos.
O legado de Robinson Cavalcanti é de esperança de que a igreja resgate o seu papel na sociedade, de que o cristianismo restaure a sua autenticidade. Somos devedores a Robinson Cavalcanti de muitos aspectos que envolvem a Teologia da Missão, a afirmação de uma teologia latino-americana, a construção de uma proposta evangelizadora que leve em consideração a vida humana nas formas concretas em que se dá a nossa própria perdição, o surgimento e fortalecimento de entidades como ABU, Fraternidade Teológica Latino-Americana, a igreja anglicana no Brasil. Sem ele, o Congresso de Lausanne em 1974 não seria o mesmo, nem mesmo a igreja evangélica brasileira teria o engajamento que teve até aqui.
São servos do Senhor assim que fazem a diferença. São testemunhos de vida que dizem para nós que vale a pena servir ao Senhor de forma coerente e comprometida com as necessidades humanas, que sonham com a possibilidade de um dia superarmos nossas carências pela força do Evangelho, ainda que isso custe tanto. A vida de Robinson Cavalcanti vai falar por muito tempo, embora hoje silenciada pela maldade de um coração tomado pelo engano.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Como falar de Deus no contexto da pós-modernidade -I / How to speak of God in postmodernity / ¿Cómo hablar de Dios en la postmodernidad

Tenho me ocupado há alguns anos com a seguinte questão: como falar de Deus a uma sociedade que aprendeu a viver sem Deus? Em função disso, tenho orientado meus estudos na busca de uma resposta que possa direcionar a minha própria ação pastoral e teológica. Quando me dei conta que estava diante desse problema, desenvolvi a percepção de que estamos diante de uma crise. Essa crise é ética – e não moral – e está relacionada à formação do discurso. De início, tratava apenas como uma desconfiança. Com o avançar dos estudos em nível de pós-graduação nas áreas de Filosofia, Linguística e Teologia, estou convencido de que a linha de investigação que me levará a uma resposta mais consistente passa pelas relações éticas e pelas formações discursivas.
Para orientar nossa compreensão a respeito dessa questão, faz-se necessário primeiramente lançar luz para entender esse tempo, chamado por muitos de pós-moderno, marcado pela fragmentação, pela relativização, pelo fim das utopias e pela perda de confiança nas instituições. Daí surge a pergunta: como definir a pós-modernidade? Podemos falar de uma nova ordem mundial ou numa afirmação da lógica engendrada pela modernidade?
O conceito de pós-moderno ainda não foi claramente definido. Para uns, estamos de fato num tempo em que uma nova lógica tem se estabelecido como paradigma para interpretar a realidade. Para outros, trata-se de uma Modernidade tardia, um desdobramento do paradigma estabelecido na Modernidade.
Quando falamos de pós-moderno, diz respeito a algo que tem a ver com o que vem depois da Modernidade. Os postulados que orientaram a Modernidade tiveram início nas afirmações de Descartes, no século XVII, que trouxeram a crença de que a ciência é o modo pelo qual conseguimos chegar à verdade. Essa crença se baseia na ideia de que a verdade pode ser alcançada pelo sujeito a partir de meios próprios, pelo exercício livre e autônomo de sua própria razão. Em função disso, só é possível conhecer aquilo que aparece à consciência, numa relação de espaço e tempo.
A Modernidade se desenvolveu a partir de uma crise, entre subjetividade e objetividade. A tentativa de solução dessa crise chegou ao seu auge com o Iluminismo (século XVIII) quando se afirmou a autonomia da razão e da vontade para se conhecer aquilo que aparece à consciência, que pode ser compreendido a partir das categorias de tempo e de espaço. O conhecimento de Deus passa a ser uma impossibilidade porque não se enquadra nessas categorias.
Do ponto de vista teológico, a Modernidade pode ser vista como uma das consequências das feridas provocadas pelo orgulho humano. As narrativas bíblicas apontam para as origens desse problema a partir de textos como os da queda e da torre de Babel, que funcionam como metáforas dessa angústia por superação de sua finitude e de suas limitações. O desejo de autonomia e de alcançar o conhecimento verdadeiro sempre foi o ideal humano. Na sua fase mítica, todas as civilizações acreditaram que a verdade plena é um saber oculto aos homens, mas acessível à divindade. O desejo de superação das circunstâncias que nos privam da verdade orientaram as descobertas humanas desde sempre.
É curioso fazer a descoberta de que Jesus também se preocupou com essa questão em seu tempo. No discurso contra os fariseus e doutores da lei, registrado em Lucas 11.37-52, Jesus relata uma série de ações que estão ligadas à maneira de interpretar a realidade, principalmente no que diz respeito à aplicação das Escrituras à vida. Os problemas vividos também estavas ligados a questões éticas – confundidas com moral – e estavam exatamente nas formações discursivas.
Continua no próximo post >>
(Resumo da aula inaugural do Seminário Teológico Batista de Niterói, no dia 9/2/2012)

Como falar de Deus no contexto da pós-modernidade -II / How to speak of God in postmodernity / ¿Cómo hablar de Dios en la postmodernidad

Jesus acusou os fariseus de serem dualistas, de serem literalistas e de basearem suas interpretações em aparência. Ou seja, eles estavam seduzidos pela mesma lógica e mentalidade ocidental, representada pelo pensamento grego, deixando de lado a essência do pensamento hebreu. Para os gregos, a verdade é uma evidência, que precisa ser percebida objetivamente e compreendida logicamente. Os hebreus tinham como herança a compreensão de que a verdade jamais será alcançada plenamente por um ser humano, uma vez que é percurso, relação, envolve caráter e a afirmação como sujeitos.
O dualismo foi uma forma de compreender o mundo em duas esferas: uma material e outra espiritual, uma que aprisiona e deteriora a alma que busca se emancipar e alcançar aquilo que só pertence de direito ao divino. O dualismo leva a um desprezo do corpo, ao vê-lo como mau e como instrumento para que o sujeito possa manipulá-lo para elevar a alma. Essa compreensão não é bíblica. É grega e ocidental.
A interpretação literalista também é uma construção fruto dessa necessidade de se ter evidências. O saber precisa ser linear, explícito, dotado de gramaticalidade, que pode ser dissecado e aperfeiçoado para ser conhecido. Isso leva a um distanciamento das relações fundamentais e ao equívoco de que a verdade corresponde ao conhecimento explícito em forma de texto, de lei ou de retórica.
O conhecimento a partir da aparência também está na base do pensamento grego. Eles diziam que só se pode conhecer aquilo que aparece – o ser é aparência –, que se manifesta à consciência como fenômeno. O logos é dispersivo, está para a consciência como devir. Esse tipo de compreensão tanto leva à absolutização quanto à relativização, tanto ao todo quanto à parte, numa lógica dedutiva de construir o raciocínio e assim se chegar às ideias verdadeiras.
Jesus afirma que essa maneira de compreender e de construir o entendimento é como um fermento e como uma hipocrisia. As duas metáforas podem significar a maneira como os saberes são construídos e disseminados na vida social, mas também a maneira como que o conhecimento precisa ser buscado além daquilo que é evidente ou da aparência.
A metáfora do fermento está ligada à figura que o judaísmo sempre atribuiu à disseminação de ideias que tendem a orientar a um tipo de comportamento e de pensamento que determinam a vida social para atender a fins que têm a ver com interesses que distanciam as pessoas das suas relações mais fundamentais: com Deus, com a natureza, com o outro e consigo mesmo.
A metáfora do hipócrita tem a ver com as formas de representação dessa mesma compreensão. Hipócrita era o nome dado ao ator das tragédias. É aquele que vive das representações.
Em Lucas 12.1-3, após esse pesado discurso aos fariseus, Jesus chamou seus discípulos a vencerem a tendência farisaica de interpretação da realidade. Da mesma forma, creio que Jesus nos chama ainda hoje a vencermos essa mesma tendência, que vai se atualizando no contexto atual.
A Teologia hoje precisa se configurar como uma construção que rompe com as formas de pensar engendradas pela Modernidade e que atualmente a humanidade começa a se dar conta. Como tem se dado essa tendência? Ela se debate entre o niilismo e o fundamentalismo. Tanto um quanto o outro são consequências do Iluminismo, que tanto ajudou a formar um arcabouço teológico tão vasto, mas que também ajudou a fundar as bases do cientificismo que domina a busca do conhecimento.
Como o ambiente teológico pode contribuir para a superação dos postulados e assim ajudar a formar uma mensagem sobre Deus nesse contexto? Isso tem a ver com a superação dessa lógica que ajudou a formar o saber teológico em vigor. Em primeiro lugar, a superação do pensamento dualista para dar maior abertura para a totalidade. Em segundo lugar, a superação do individualismo narcisista, característico desse tempo, para o desenvolvimento do sentido de comunidade. Em terceiro lugar, a superação das metanarrativas para dar maior espaço para as metáforas. Metanarrativa tem a ver com a crença nas verdades universais, uma narrativa de nível superior capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de representar uma verdade absoluta sobre o universo. A aspiração de um saber globalizado, por exemplo, tem levado à ilusão de que a ciência tem todas as respostas. Finalmente, a superação do dogmatismo para a compreensão da distinção entre fé e afirmação da fé.
(Resumo da aula inaugural do Seminário Teológico Batista de Niterói, no dia 9/2/2012)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Justiça: julgamento de Lindemberg e Ficha Limpa, sinais de amadurecimento da sociedade / Justice / Justicia

Começo da noite do dia 16 de fevereiro, sai a notícia do resultado de dois julgamentos que têm provocado interesse popular no Brasil. Depois de quatro dias, o tribunal do júri da cidade de Santo André – SP condena Lindemberg por doze crimes cometidos no caso da morte da adolescente Eloá, em 2008, num total de 98 anos e 10 meses de prisão. Nesse mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal põe fim à longa discussão sobre a chamada Lei de Ficha Limpa que impede que pessoas que respondem por crimes se candidatem a cargos eletivos. Essa discussão vem sendo travada desde 2010, tendo começado no Congresso Nacional. A decisão final é que a Ficha Limpa vale integralmente para as eleições municipais de 2012.
Essas duas decisões, de um lado, tornam visível a presença da justiça como uma instituição necessária e indispensável para orientar a sociedade a superar suas desigualdades. A partir das formas jurídicas com que a sociedade se organiza, é possível garantir princípios mais dignos e responsáveis de se viver a vida comum. Num tempo em que se valorizam os direitos individuais – que também são dignos e devem ser perseguidos –, a gente descobre que os direitos coletivos de mais justiça e respeito a valores que são caros à sociedade ainda estão colocados em pauta.
Por outro lado, tais decisões lembram que vivemos um novo tempo na sociedade brasileira. Tempo em que é possível declarar que a esperança pode vencer o medo, que é possível lutar por relações mais justas, que está chegando ao fim o império do mais forte, que é possível rechaçar os mecanismos com que a maldade toma forma na vida social.
Vivemos num contexto marcado por sede de justiça. A gente pode ver isso por todos os lados, nas manifestações contra a corrupção, no grito dos excluídos, no protesto dos que são vítimas de preconceito. É um tempo em que a história brasileira começa a ser escrita pelos mais fracos e injustiçados dessa terra.
Pode ser que alguém diga que é uma utopia. E é. Mas uma utopia que vem sendo construída desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o estabelecimento do Estado Democrático de Direito. Isso pode ser visto em várias expressões: a lei de responsabilidade fiscal, o código de defesa do consumidor, a lei Maria da Penha e outras legislações até então não pensadas, que têm combatido situações de opressão, de covardia, de intolerância, de exploração e de arrogância.
É possível pensar que teremos uma sociedade melhor? Pode ser que sim. Mas a realidade é que a condenação de Lindemberg não trará Eloá de volta, nem a decisão do STF impedirá a corrupção. Pelo menos a gente sabe que é possível levantar a voz e clamar por justiça, sem que se corra o risco de receber uma mordaça de volta.

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