segunda-feira, 18 de março de 2013

A eleição do papa Francisco e o futuro do cristianismo / The election of Pope Francisco and the future of Christianity / La elección del Papa Francisco y el futuro del cristianismo

A sucessão do papa está cercada de surpresas: a surpresa da renúncia, a surpresa da escolha rápida, a surpresa do primeiro papa jesuíta e latino-americano e a surpresa do nome Francisco. O Cardeal Jorge Mario Bergoglio, Arcebispo de Buenos Aires, escolhido no dia 13 para ser o novo papa, traz expectativas de mudanças para uma igreja que se encontra em crise. É, sem dúvida, um fato histórico cercado de muitos significados e que exige muito cuidado para sua análise e compreensão.
A princípio, ventos de mudança sopram pelo Vaticano e o cristianismo como um todo. Primeiro por que a igreja passa por uma crise diferente das que já passou em outras épocas. A igreja que já enfrentou feras, fogueiras, imperadores e heresias enfrenta uma crise que é deste tempo, marcado pelo desencantamento do mundo, pela fragmentação do sujeito e pelo fim dos absolutos. O que está em jogo não é mais a autoridade e identidade da igreja, mas a validade da fé em Jesus Cristo como único meio de salvação. O homem contemporâneo aprendeu a viver sem Deus e se sente muito bem com isso, de tal maneira que é indiferente à proposta de fé cristã.
O discurso religioso do cristianismo é como uma voz em meio a muitas outras vozes que soam aos ouvidos de uma humanidade errante como ovelhas sem pastor ao mesmo tempo em que a voz do pastor como aquele que guia já não faz mais qualquer sentido hoje se não for marcada pelos apelos da sociedade de consumo, do prazer e do individualismo que se formou.
A chegada do novo papa é marcada pela esperança de que as mudanças sonhadas pela cristandade desde o fim da Idade Média finalmente cheguem até nós. É desde lá que se diz que a igreja precisa mudar o rumo. Essa foi a vocação de Francisco, o de Assis. Esse foi o legado de John Wycliff, João Huss e Savonarola. Essa foi a intenção dos reformadores protestantes. Essa foi a proposta do Concílio Vaticano II. E que mudanças são essas? A retomada de um modo de vida marcado pelo caráter de Jesus de Nazaré.
Conforme Leonardo Boff afirmou, o nome Francisco é um arquétipo das possibilidades de mudanças. Uma igreja pobre para os pobres, centrada nos valores anunciados pelo Cristo, como o perdão, a misericórdia e a simplicidade. Conseguiremos ver isso acontecer? Num espaço curto de tempo, será difícil de se ver. As mudanças na igreja romana fazem parte de um processo muito lento, dado o seu gigantismo e seu milenarismo, que pode levar tempo, séculos talvez. O importante é que o discurso se faz ouvir a partir do núcleo, do centro em que se exerce o poder da igreja, o próprio pontífice, não mais das suas periferias.
Tenho para mim que as mudanças que são de fato necessárias não são estruturais, eclesiológicas ou políticas. Elas são conjunturais. Cristãos precisam assumir uma nova consciência, a de que somos parte de um todo complexo e que dependemos uns dos outros para existir. Precisamos nos dar conta do fato de que não somos espectadores de um naufrágio, seguros em um porto. Estamos todos num mesmo barco e corremos os mesmos perigos.
O fato de o novo papa ser argentino, latino-americano e jesuíta é secundário. O que pesou mais em sua escolha foi o fato de ser conservador e ter uma história de cuidado no campo pastoral. Afinal, um colégio de cardeais conservadores elegem sucessores a sua imagem e semelhança. Suas primeiras palavras indicam que há duas tendências que serão pautadas: a experiência mística e a ação pastoral. Não são alternativas novas. É o apelo da fé e da missão. Não são alternativas entre muitas. São as únicas alternativas viáveis. Que esses ventos de mudança soprem sobre protestantes também.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Direitos humanos, intolerância e preconceito: a propósito da indicação de Marco Feliciano / Human rights, intolerance and prejudice / Los derechos humanos, la intolerancia y los prejuicios

Os protestos contra a indicação do pastor evangélico Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados traz à tona a discussão em torno de um tema que envolve a relação com as liberdades individuais: questão dos direitos das minorias. A própria indicação em si já é resultado de uma manobra que está longe de interessar a quem luta pelos direitos universais do homem, quanto mais às minorias. Acho até que haverá muita dificuldade para encontrar um nome de consenso dentro da própria comissão – e da composição atual do parlamento brasileiro – para estar à frente da pasta.
Pelo fato de ser pastor e estar à frente de um movimento oriundo no seio do protestantismo, Marco Feliciano supostamente teria tudo para responder ao cargo. Afinal, a função pastoral é de ajudar as pessoas a governarem bem a sua vida de tal maneira que encontrem sua realização plena. Além disso, a luta pelos direitos humanos, pela tolerância e pela liberdade de expressão nasceu em um contexto peculiar ao movimento da reforma protestante e se tornou sua bandeira de luta na Modernidade. Há também que se falar no apelo cristão e evangélico – do Evangelho mesmo – à liberdade, ao respeito aos valores humanos e à fraternidade.
O que se vê, no entanto, é que o pastor Marco Feliciano carrega consigo um rastro de preconceitos e intolerâncias que estão completamente em oposição à história da igreja evangélica no mundo e ao cerne da mensagem cristã. E o pior disso tudo é que não há como ele se dar conta disso, pois está inserido no contexto de uma teologia triunfalista e ufanista, herdeira de uma cultura de culpabilização, que constitui hoje a teologia evangélica praticada no Brasil, notadamente a que faz uso dos meios de comunicação de massa e arrasta multidões aos seus templos.
O resultado é um desastre: as minorias lideradas por um patrulhamento ideológico, consequência da intolerância e preconceito, combatem a pessoa de Marco Feliciano com mais intolerância e preconceito. Não, ele não é inocente e nem é a pessoa indicada para o cargo. Sua indicação é prova do fracasso da sociedade politicamente organizada que não dispõe de melhores exemplos de luta pela defesa dos direitos humanos. Essa luta é que não é pessoal. Ele é de toda a sociedade. Não basta que celebridades midiáticas chamem o pastor de “monstro”. Monstruoso é ver que chegamos a um ponto de saturação da tolerância em que não dá mais para se tolerar, pois aqueles que tinham o dever de fazê-lo são os mais intolerantes.
Isso abre um caminho perigoso: não dá para aceitar o pastor intolerante e preconceituoso na Comissão de Direitos Humanos, mas dá para se silenciar diante da nomeação de um acusado de corrupção para a Comissão de Finanças, um acusado de fraude na Comissão de Justiça e um acusado de desmatamento na Comissão de Meio Ambiente. O caminho dessa nova moralidade é que é perigoso, que diz o que pode e o que não pode na vida pública como se isso fosse numa troca, que permite que alguns erros sejam intoleráveis e outros aceitos com mais passividade. E como se faz essa distinção? Pela intensidade do grito, pelo patrulhamento e pela execração da figura pública nas redes sociais, abaixo-assinados e outros.
A indicação de Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos é um absurdo. Por trás disso está a figura de um pastor que deveria ser um exemplo e testemunha do amor de Jesus a todas as criaturas. Está também o retrato de uma sociedade errante que não tem quem a guie como um pastor. Quando a sociedade começa a questionar com razão aqueles que têm o dever de guiá-la, é hora de chorar. Fracassamos na nossa missão.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Uma fé que precisa do outro / A faith that needs the other / Una fe que necesita del otro

O que é a fé senão uma experiência de encontro? Muitos a veem como uma dádiva concedida para que, através de sua posse, sejamos salvos. Outros a veem como um saber adquirido, um conjunto de prescrições, valores e princípios que orientam a vida. Sim, a fé é isso: dádiva e conquista, o que orienta a vida, o que dá sentido à existência. Isso não é uma mera faculdade humana. É graça à qual temos acesso pelo ouvir.
Entretanto, quero apontar um terceiro modo de entender a fé: experiência de encontro. O cristianismo se apropriou de uma palavra que os gregos usavam para descrever a fé: pistis. Essa palavra significava uma confiança que a pessoa poderia adquirir ou receber por dar credibilidade a alguma coisa ou a alguém. Implicava uma conduta, uma relação com o outro. Daí a ideia de fidelidade. Só posteriormente que recebeu um sentido de convicção, no sentido de um destino final.
A cultura judaica já conhecia esse sentido primordial da fé como confiança. A palavra hebraica aman significava “ser digno de confiança”. Sendo assim, a fé é elemento fundador de uma relação, de acolher e de ser acolhido pelo outro. O cristianismo é isso: resultado de uma experiência de encontro com o Cristo vivo, que nos acolhe por amor e deseja que o acolhemos em amor.
A fé assim implica encontro com o que está para além de nós, com o transcendente. E o fazemos na medida em que percebemos esse transcendente como uma pessoa que se faz ausente e distante. É na ausência de Deus que podemos elaborar uma experiência de busca e, em meio a isso, permitir que Deus revele a nós quem ele é.
A fé que é encontro também nos confronta com o outro. Não é um isolamento monástico, um afastamento do mundo, uma reclusão. Antes, é a abertura para as interpelações que o outro me impõe na medida em que ele mesmo se mostra para a mim e me reconhece como pessoa. É como um espelho em que tudo o que se dá não passa de representações que exigem múltiplas interpretações. Gestos, palavras e expressões compõem o misterioso universo do dito, do não dito e do interdito que atravessa nossas interações com o outro.
A fé como encontro é um mergulho no ser, um encontro consigo mesmo. Implica coragem de desvendar para si o que está por trás das muitas máscaras que se usa e que acabam confundindo e iludindo a respeito de quem se é. Uma fé que não ajuda a descobrir a si mesmo não passa de alienação, de delírio, de entorpecimento. Um exercício de introspecção que não contribui em nada se não servir para me lançar de volta a uma busca de Deus e a uma caminhada com o outro com todos os perigos que isso envolve.
Por isso que os cristãos primitivos usavam tanto a expressão “uns aos outros”. A experiência de fé exige uma aceitação do outro do jeito que é. Exige o exercício de paciência a fim de que as condições históricas de uma caminhada possível se concretizem. Exige um exercício de parceria, de solidariedade, que implica muito mais o que se tem a oferecer do que o que se tem a receber. Exige uma vivência em amor, nos moldes do que Cristo viveu ao assumir o perigo da cruz.
A fé que não pode ser partilhada como uma experiência “uns aos outros” parece estranha à proposta do cristianismo. Ao contrário, a fé é condição para ser cristão porque nos tira no isolamento, do e egoísmo e da morte para nos devolver à vida e nos remeter de volta ao que nos dá sentido. O que nos tira disso é pecado: “o que não provém da fé é pecado”. Romanos 14.23.

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