Lucas narra a trajetória de Jesus até a
cruz de forma muito curiosa. No capítulo 23, logo após o julgamento, Jesus
inicia sua caminhada observado por muitas pessoas. Certamente, a maioria que
estava ali não era a favor da condenação, mas assistia com diferentes olhares
aquele homem enfraquecido pelos açoites carregando uma cruz.
Quem eram as pessoas que estavam ali na via crucis da história? Eram pessoas com
identidades distintas, mas que acabavam encontrando a si mesmas diante daquele
escandaloso espetáculo. A primeira pessoa a ser mencionada é Simão, o cireneu,
que nem era dali. Constrangido a ajudar a Jesus, teve que carregar o peso da
cruz, mesmo sem vontade de fazê-lo. Era um visitante que veio à Jerusalém para
a festa da Páscoa. Nenhum seguidor de Jesus foi compelido a carregar a cruz,
mas sim um estranho.
Lucas fala da multidão que se estendia ao
longo do caminho. A grande quantidade de curiosos era marcada pela dor e
repulsa por aquele momento trágico. O espetáculo da crucificação levou as
pessoas a baterem no peito, que era o sinal de luto. Poderia ser também um
sinal de contrição, clamando por misericórdia por si mesmos, o que não
acontecia naquele momento. As mulheres geralmente acompanhavam os funerais com
cânticos e choro, produzindo muito barulho. A multidão, entretanto, apenas
acompanhava a execução.
Ao chegar ao Calvário, o monte da
crucificação, Jesus foi crucificado entre dois criminosos. A condenação à cruz
era destinada aos crimes mais hediondos. Um zombava de Jesus, mas o outro o
identificou como aquele que pode perdoar e propor uma nova vida, ainda que no
restinho dela.
As autoridades que executaram a
crucificação zombaram de Jesus, argumentando contra a sua condição de Messias e
Salvador. Ao final, o centurião, chefe da tropa que comandou a execução, teve
que reconhecer a inocência de Jesus e glorificou a Deus.
Não podemos nos esquecer daqueles que eram
seguidores de Jesus, que apenas ficaram contemplando a tudo de longe. As
mulheres mencionadas eram as que serviram a Jesus. Talvez não fosse
aconselhável envolver-se demais.
O trajeto percorrido por Jesus até a cruz
acabou se constituindo num exercício espiritual repetido através da história
do cristianismo, em que fiéis são conduzidos a meditar em cada parada de Jesus
durante a caminhada, que ficou conhecido como via crucis, ou via sacra, ou mesmo via dolorosa. Atualmente, esse
exercício inclui 14 estações que lembram etapas desse trajeto, que são
relembradas no chamado período da Quaresma, que antecede a Páscoa. Muitos religiosos
escreveram meditações para esse exercício, entre eles os dois últimos papas
João Paulo II e Bento XVI. Os católicos costumam se referir a Jesus na via
sacra como o Senhor dos Passos.
Lutero desenvolveu sua teologia a partir da
cruz. Para ele, a nossa condição de pecadores nos impede de conhecer Deus em sua
glória. A sabedoria humana jamais permitirá um conhecimento de Deus como ele é.
A forma com que o homem pode conhecer Deus é através do sofrimento da cruz. É
na cruz que encontramos a nossa redenção e é nela que Deus revela seu amor.
Olhar para a cruz é encontrar Deus, não no lugar onde queremos vê-lo, mas no
lugar onde ele se revela em toda a sua plenitude.
Na cruz, Deus se mostra humano: impotente
diante da morte, humilhado pela culpa que tomou para si. Ali, todas as nossas
ideias sobre quem ele é e sobre quem nós somos são lançadas por terra. O que
fica é a confrontação com alguém que se faz frágil, que se entrega ao
sofrimento e se expõe ao escândalo. Muitos querem encontrar Deus em meio às
circunstâncias da vida, perguntando-se por onde ele está. Só o encontraremos se
o buscarmos no lugar mais escondido, nas noites escuras da vida que envolvem o
comprometimento com a morte de Jesus na cruz. Isso nos humaniza, porque nos
expõe à nossa própria fragilidade. Sem a experiência com o caminho de Jesus até
a cruz, a fé se torna vazia.
A cruz nos chama para uma espiritualidade
que nos impõe um paradoxo. Muitos seguem a Jesus até o partir do pão, mas
poucos assumem o desafio do cálice da paixão. Muitos buscam a Jesus por causa
dos seus milagres, mas poucos o seguem até a cruz. Muitos querem um
cristianismo de boas realizações, mas poucos compreendem a entrega de si na
cruz. Refletir sobre a cruz é encontrar-se consigo mesmo no lugar em que Deus,
na história, se revelou como um de nós.