segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Desejos para o Ano Novo / Wishes for the New Year / Deseos para el Año Nuevo

Ele fez tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade.” Eclesiastes 3.11.
Desejo que no Ano Novo...
... Não apenas conquiste o sonho da casa própria, mas que gaste mais tempo com sua família.
... Não apenas troque de carro, mas que redescubra o gosto de caminhar na natureza.
... Não apenas compre um celular novo, mas reinvente modos de se conectar com as pessoas mais próximas.
... Não apenas adquira uma TV de última geração, mas que aprenda a ver o mundo com outros olhos.
... Não apenas consiga um salário melhor, mas que mude seu modo de investir o que tem.
... Não apenas faça a viagem dos sonhos, mas que dê asas à sua imaginação a respeito de um mundo melhor.
... Não apenas tenha saúde, mas que não abra mão de ser generoso e solidário.
... Não apenas tenha muito dinheiro no bolso, mas que tenha abundância de gestos de gentileza.
... Não apenas tenha sucesso em seus empreendimentos, mas que saiba como fazer novos amigos.
... Não apenas seja feliz, mas que pratique bondade até mesmo naquelas circunstâncias que não são agradáveis.
... Não apenas ame mais, mas que releve as pequenas ofensas.
... Não apenas seja próspero, mas que esbanje carinho com quem está perto.
... Não apenas tenha paz, mas que seja a mudança que deseja ver no mundo.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Natal, mistério da Misericórdia / Christmas, Mystery of Mercy / Navidad, el mistério de la Misericordia

“Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê, e ela deu à luz o seu primogênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lucas 2.6,7).
O Natal é a expressão da misericórdia divina que chega até nós com um rosto, com forma de gente. É ocasião em que somos chamados a agir de forma mais humana porque o eterno se fez como um de nós.
Por essa razão, o Natal deve ser marcado tanto pela celebração da manifestação da misericórdia divina quanto por nossa resposta ao convite para sermos misericordiosos. Do contrário, o Natal não vai passar de uma festa de aniversário do pior tipo, aquela em que sequer cumprimentamos o aniversariante.
Jesus nasceu num contexto de humildade. Seus pais não tinham o prestígio para encontrar um lugar de descanso na cidade. Tudo o que conseguiram foi um espaço numa estrebaria. Num leito emprestado – um coxo para alimentar animais –, o salvador do mundo teve sua primeira acolhida. Ali na manjedoura, Jesus revela o mistério da misericórdia e, ao revelar, se abre para que encontremos o sentido para a nossa existência. Ali, a dignidade humana é valorizada, o sentido da criação é resgatado.
Na noite em que Jesus nasceu, não havia lugar para ele nas hospedarias da terra natal de seus pais. Esse episódio é representativo da condição do mundo, que não tem espaço para Deus. Hoje, mais do que antes, Deus é lançado para fora do mundo. Cada vez mais pessoas não têm espaço para Deus em sua vida, em suas famílias, em seus negócios e em seus relacionamentos.
Em Cristo, Deus se fez pequeno, como um de nós, para nos atrair para si, para o seu amor. Celebrar o Natal nessa perspectiva é compreender o amor e a justiça de Deus que se expressam em seu gesto misericordioso. Apesar de nosso distanciamento e indiferença, Deus nos alcança com seu amor, age com justiça em nosso favor e nos acolhe com seu perdão.
Quando Deus se fez criança, ele demonstrou que estava inclinado para nossa humanidade. Ele se fragilizou ao ponto de precisar do cuidado de uma família. Deus se fez humano para resgatar o que há de mais humano em nós. Deus se fez história para nos conduzir aos seus propósitos. Deus se fez temporal para que pudéssemos experimentar sua misericórdia. Deus se fez mundano para que pudéssemos alcançar o céu.
Jesus é a misericórdia divina com identidade. E é na sua pessoa que o Natal se converte em um tempo de refletir sobre a nossa relação com Deus. Não é um evento preso ao passado, mas é um fato que nos remete de volta à nossa existência, para nos redimir de nossa própria perdição.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O preço da misericórdia / The price of mercy / El precio de la misericordia

“Você não devia ter tido misericórdia do seu conservo como eu tive de você?” (Mateus 18.33).
A misericórdia não é barata. Ela tem um preço, o da compaixão. A misericórdia barata não passa de assistencialismo ou caridade de pessoas com a consciência culpada. Deus espera que as pessoas sejam misericordiosas do mesmo modo que ele o foi conosco.
Para falar do preço da misericórdia, Jesus contou a parábola do credor incompassivo. Nela, Jesus ressaltou o contraste entre as ações compassivas de Deus e as atitudes humanas em relação as necessidades dos outros. Tudo começou com a pergunta acerca de quantas vezes se deve perdoar uma pessoa que falha com a gente.
A história que Jesus contou consiste em um quadro de endividamento. Um senhor, rico proprietário (algumas traduções dizem que se tratava de um rei), resolveu pedir uma prestação de contas de seus servos. Entretanto, havia um que estava numa situação insolvente e isso colocava em risco até a sua família. O servo implorou por paciência e pediu um prazo mais longo para pagar toda a dívida. O senhor, então, fez mais do que isso: teve compaixão do servo e cancelou a dívida.
Saindo do encontro de prestação de contas, o servo encontrou-se com um subalterno que lhe devia uma quantia muito inferior. Tomado por uma fúria, aquele servo agarrou seu ajudante e exigiu o pagamento imediato da dívida. O ajudante pediu um pouco de paciência, pois iria pagá-la. Mas o servo foi impiedoso e mandou prendê-lo por causa daquela pequena quantia.
Os companheiros daquele servo souberam do que aconteceu e a notícia foi parar nos ouvidos do senhor, que chamou o seu servo e lhe perguntou o óbvio: “não era para você ter pena do seu companheiro como eu tive pena de você?” Jesus disse que aquele senhor ficou irado e mandou que fosse cobrada toda a dívida dele.
Esta é a mais sublime lição moral que Jesus deixou para seus seguidores, a de que tudo aquilo que recebemos pela graça, por graça devemos compartilhar com os outros. A misericórdia se expressa dentro de uma relação de alteridade.
A parábola contém uma promessa e uma advertência: a promessa diz respeito ao fato de que a misericórdia é ampla, completa e extensiva a todos; a advertência é que a misericórdia só se realiza quando somos capazes de ser misericordiosos.
A atitude humana em relação às possíveis falhas e fraquezas dos outros é marcada pelo preconceito e pelo egoísmo. Quando a gente lembra disso, somos chamados a uma revisão de nossos conceitos. A recusa humana em acolher o outro em sua própria condição é a causa de toda sorte de violência e maldade.
Jesus usou a parábola do credor incompassivo para concluir seu sermão a respeito da principal característica da vida em comunhão: o perdão. Quando alguém se nega a perdoar o outro demonstra que não tem condições de ser perdoada. Uma pessoa que não é capaz de perdoar jamais experimentou a misericórdia de Deus em sua própria vida.
Basear os nossos relacionamentos somente nos merecimentos é o mesmo que negar a esperança da redenção. O custo da misericórdia é o maior ensino civilizatório que a humanidade já recebeu: o de fazer aos outros o que você gostaria que fizessem contigo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Quando a misericórdia acontece / When mercy happens / Cuando la misericordia ocurre

“[...] Deus interveio em favor do seu povo” (Lucas 7.16). 
A dor da perda é dilacerante. Perder alguém que a gente ama, então, abre uma cicatriz que nem o tempo sara. A viúva de Naim vivia essa dor. E para mal da sua sorte, seu único filho, fruto do seu amor, também acabara de morrer. Alguém já disse que quem perde um pai é chamado de órfão, quem perde o cônjuge é chamado de viúvo, mas quem perde o filho não tem nome que dê conta de tamanha tristeza.
Alguns podem até argumentar o problema social da mulher naquela época. Ela ficaria completamente desamparada. Mas ela não tinha condição de avaliar isso naquele momento. No seu coração só havia espaço para o pranto, para a angústia, para o desespero. Como continuar viva sem ter ao lado aqueles a quem se ama?
Enquanto o funeral saía da cidade para o último adeus, a multidão que o acompanhava se depara com a comitiva que seguia a Jesus, que chegava. Duas multidões: uma solidária com a dor, outra cheia de esperança; uma que se perguntava sobre o sentido da vida, outra que havia encontrado o autor da vida; uma que se deparava com a finitude, outra que se enchia de esperança com o futuro.
Na chegada à cidade, a morte encontrou-se com a vida, o cortejo de dor encontrou-se com a caravana que restaura a alegria, o sentimento de perda cedeu lugar à descoberta da vida. Jesus se aproximou do cortejo fúnebre e disse apenas duas coisas. Uma delas dedicada à mulher: “Não chores”. A outra, dirigida ao jovem no caixão: “levante-se”. A misericórdia tinha se manifestado ali.
As pessoas que assistiam a tudo, tomadas pelo temor, louvavam a Deus, pois somente ele poderia fazer algo para acalmar corações sofredores, como o daquela mulher. Isso lembra o que disse Bonhoeffer: “Só o Deus que sofre pode ajudar”. Todos ali se sentiam igualmente abençoados e reconheciam que a manifestação da misericórdia se estendia a todos. Por isso, levantavam brados de alegria: “Deus interveio em favor do seu povo”.
Em todos as narrativas dos milagres realizados por Jesus, as pessoas vinham até ele e clamavam por misericórdia. No episódio do filho da viúva de Naim, podemos ver o Senhor se dirigir até aquela pessoa carente e oferecer o seu cuidado amoroso por sua própria iniciativa.
Quando a misericórdia acontece, Deus restaura a alegria, renova a vida e encoraja a ter esperança no futuro.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

O que a misericórdia realiza? / What does mercy accomplish? / ¿Qué hace la misericordia?

“[...] Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado (João 8.11). 
O que uma pessoa tomada por um sentimento misericordioso é capaz de fazer diante de alguém que carece de misericórdia? A história do encontro de Jesus com a mulher surpreendida em pleno adultério nos ajuda a descobrir o que a misericórdia pode fazer.
Naquela cena estavam vários atores: os sem misericórdia, aquela pessoa carente de misericórdia e aquele único que é cheio de misericórdia. As atitudes eram claras: aquelas pessoas que não têm misericórdia eram intolerantes e culpabilizadores, a carente da misericórdia estava totalmente vulnerável e o misericordioso agiu de forma amorosa por livre e espontânea vontade.
Os sem misericórdia ruminavam ódio, mas logo foram convencidos de que a situação deles não era muito diferente daquela que carecia de misericórdia. Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela, disse-lhes Jesus. A carente de misericórdia estava rendida e fragilizada pelo medo, pela vergonha, pela culpa, pela impotência e pela desesperança. Ela não era capaz de encontrar uma solução para seu conflito interior e muito menos para apaziguar seus algozes. Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém a condenou?”, perguntou Jesus. O cheio de misericórdia agiu como era de se esperar: ele a perdoou e e lhe ofereceu uma nova chance. “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado, disse Jesus a ela.
A Bíblia diz que Jesus ficou só, com a mulher em pé diante dele”. Santo Agostinho, ao comentar essa passagem, diz que, após os sem misericórdia saíram, ficaram no local apenas a miséria e a misericórdia. Estavam ali o pecador e aquele que pode perdoar os pecados, a fragilidade humana e a bondade divina. Era o encontro entre o que se sente miserável e aquele que pode oferecer misericórdia. O papa Francisco argumentou que, ali, a “a miséria do pecado foi revestida pela misericórdia do amor”.
O que pode fazer a misericórdia? Ela nos humaniza. A intolerância, a culpabilização, o preconceito e o ódio são atitudes que nos desumanizam. A misericórdia divina, porém, restaura a nossa dignidade e nos torna capazes de sermos simpáticos à aflição de quem sofre as consequências da desumanização.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Pessoas misericordiosas fazem falta / Merciful people are needed / Se necesitan personas misericordiosas

“Em Jope havia uma discípula chamada Tabita, que em grego é Dorcas, que se dedicava a praticar boas obras e dar esmolas” (Atos 9.36).
Dorcas foi uma mulher extraordinária. Ela foi chamada de discípula, no mesmo nível de compromisso dos discípulos de Jesus. Só aí dá para imaginar sua personalidade: tinha um coração cheio de misericórdia e uma vida dedicada a praticar misericórdia.
Quando Dorcas adoeceu e veio a falecer, as pessoas de Jope colocaram seu corpo num cômodo e correram para chamar Pedro e lhe pedir ajuda. Quando Pedro entrou naquele cômodo contemplou o seguinte quadro: um grupo de viúvas desamparadas, chorando diante do corpo inerte de uma mulher. Ali estava o quadro mais nítido da desesperança. A fonte da misericórdia havia cessado.
As viúvas carregavam consigo as roupas que Dorcas havia feito para elas. Mas elas não choravam por causa das roupas. Elas choravam porque a única pessoa que agiu com misericórdia com elas havia morrido. Todo mundo sabe que fazer uma roupa não é algo simples. Envolve todo processo de tirar medidas, ouvir sugestões, acertar gostos e estilos. Nisso tem o toque, a escuta, a atenção.
Pessoas que já eram marcadas pela dor da perda encontraram em Dorcas não só presentes e doações, mas alguém que lhes dava importância, que lhes servia com interesse, que lhes dedicava tempo, que lhes atribuía um valor especial. Dorcas não foi misericordiosa porque lhes dava coisas, mas porque “estava com elas”.
Tomado pela empatia da dor, Pedro quis ficar só, ajoelhou-se e orou. O que teria dito a Deus? Imagino que, em lágrimas, teria dito que não havia o que fazer ali se Deus não restaurasse sua misericórdia para com aquelas viúvas. Foi por isso que, logo depois de orar, olhou para aquele corpo e chamou pelo seu nome mais íntimo: “Tabita, volta para nós. Levante-se. Todos nós precisamos de você”.
Dorcas abre seus olhos e Pedro entende que está diante da misericórdia em pessoa. Ajuda-a a levantar-se e chama a todos para estarem de novo com ela. A cidade de Jope não era pequena, mas todos ficaram sabendo de como Deus restaurou sua misericórdia naquele lugar.
Pessoas misericordiosas fazem falta.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Qual o espaço para a misericórdia? / What is the space for mercy? / ¿Cuál es el espacio para la misericordia?

“Então Jesus lhe disse: ‘Levante-se! Pegue a sua maca e ande’” (João 5.8).
O poço de Betesda era o lugar propício para a prática da misericórdia. Seu nome significava isso mesmo: “casa de misericórdia”. Ao lado dele havia sido construído abrigos para acomodar muita gente. Porém a história era bem outra.
Conta-se que aquele era o lugar em que as famílias, para se verem livres dos seus doentes, os abandonava junto à fonte de água que jorrava ali. Com o tempo, desenvolveu-se uma crença de que um anjo visitava de vez em quando o lugar e agitava as águas do poço. O primeiro que mergulhasse seria curado.
Não se sabe se alguém chegou a receber a cura ali. Mas dá para se fazer uma ideia do tumulto que acontecia. Os mais ricos logo ocuparam os lugares mais próximos ao poço. Alguns até contratavam escravos para vigiarem a água para eles. De repente, alguém gritava: “a água foi agitada!” E todos disputavam para ver quem mergulhava primeiro. Cegos, paralíticos, mutilados, surdos, toda sorte de portadores de necessidades especiais. Eram maltrapilhos e rejeitados. Todos disputando entrar no poço.
Quanta história de fracasso e decepção cercava o poço de Betesda! Quanta esperança e fé havia ali apesar de tudo! A única coisa que não havia era misericórdia. Essa passava longe do lugar onde se dizia que era a sua habitação.
Até que um dia Jesus passou por ali. Viu um paralítico deitado em seu leito, triste e desolado.
– Há quanto tempo você está aqui?
– 38 anos...
– Depois disso tudo, você ainda tem esperança de ser curado?
– Senhor, ninguém me ajuda. E quando a água é agitada, vem outro mais esperto e entra primeiro.
– Então, levanta, pega o seu leito e anda!
Imediatamente o que era paralítico se levantou e andou.
Qual é o lugar da misericórdia? O lugar onde aquele que é misericordioso encontra-se com alguém que precisa de misericórdia.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Tragédia em voo da Chapecoense: a finitude e a transitoriedade da vida / Tragedy in flight of Chapecoense: the finitude and the transience of the life / Tragedia en vuelo de Chapecoense: la finitud y la fugacidad de la vida

O acidente que ceifou a vida da quase totalidade do time de futebol da Chapecoense, além de equipe técnica, jornalistas e muitos outros que o acompanhavam para a primeira partida da final da Copa Sul-Americana, é marcado por um sentido de dor e angústia que não dá para se descrever em palavras. O que fica é esse sentimento de perplexidade diante da finitude e da transitoriedade da vida, aspectos que fazemos o esforço de não levar em conta na hora de construir planos e sonhos, mas que gritam o tempo todo para lembrar da fragilidade humana, de nossa incompletude e de que não temos o controle de nossa existência.
Fico com a definição de Georges Bataille: “a morte é em certo sentido uma impostura”. Ela se disfarça e se apresenta nos espaços não desejados. Uma invasora da vida, uma intrusa em nossos projetos. Ela está sempre ali para nos trazer de volta à dura realidade que estamos num vazio, que somos detentores de um poder ilusório, que vivemos em meio ao imponderável, ao insólito, ao improvável.
A morte põe em questão nossa existência. Na medida em que só tenho uma vida para viver e na proporção em que minha consciência é regida pela memória, viver é como vaguear entre esperança e tentativas, procurando dar um passo de cada vez como um bêbado equilibrista, como quem dança na corda bamba. Somente a morte nos traz de volta ao senso de que estamos diante da incerteza, de que até aqui tudo o que fizemos foi transcender à fatalidade de uma vida sem expressão. Como disse Elis Regina: “A esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar”.
Somos sujeitos que vivem diante de uma armadilha: que nos lança o desafio de rejeitar o vazio de uma vida sem sentido, ao mesmo tempo que nos permite perceber nossa própria finitude. É o chamado para a vida eterna que se defronta com o grito “por que me abandonaste?” Nem Jesus escapou dessa agonia. Aquele que enfrentou esse mesmo dilema nos chama a uma superação. “[...] A morte foi destruída pela vitória(1 Coríntios 15.54).
Os que embarcaram naquele voo tinham um sonho de conquistar um prêmio, mas se depararam com o grande dilema do jogo da vida. 71 mortos. 6 sobreviventes. Famílias sofridas. Uma cidade perplexa. Um país em estado de tristeza. Como fazer para seguir adiante? Logo a gente descobre que ainda persiste aquela teimosia de ir além, de que viver é se abrir para o que dá esperança, de que vale a pena encarar desafios até para honrar a memória dos que se foram.
Com o trágico acidente, somos chamados à solidariedade, ao exercício da misericórdia, à compreensão de que os títulos não representam nada diante da fugacidade da vida, de que é possível imaginar um outro modo de se construir a nossa existência. É uma pausa para pensar sobre o que estamos fazendo com o que ainda nos resta da vida. Desejo aos familiares, companheiros e torcedores da Chapecoense toda a consolação que só o Espírito Santo de Deus pode dar. Desejo o mesmo para as equipes de mídia e os demais simpatizantes que acompanhavam o time. Que Deus nos console a todos.

domingo, 20 de novembro de 2016

Como pessoas misericórdias agem? / How merciful people act? / ¿Cómo actúa la gente compasiva?

“Que é mais fácil dizer: ‘Os seus pecados estão perdoados’, ou: ‘Levante-se e ande’?” (Lucas 5.23).
O mundo carece de gente misericordiosa pelo simples fato de que tais pessoas agem com misericórdia, que é o que mais se precisa. O episódio da cura do paralítico de Cafarnaum é um exemplo disso. Ele chama a atenção não por causa do milagre em si, mas pela atitude das pessoas que o conduziram até Jesus.
A história é narrada nos três evangelhos sinóticos, mas Marcos e Lucas destacam como foi que isso aconteceu. Jesus se encontrava em uma casa apinhada de gente e quatro homens levaram o paralítico até ele em uma maca. Fico imaginando o quadro: eles chegam à entrada da casa, tentam entrar, forçam passagem com a maca, mas não conseguem. Eles olham um para o outro e bolam um plano alternativo, que era colocar o paralítico no meio da sala onde Jesus se encontrava através de uma abertura no piso do terraço. Era um empreendimento trabalhoso que demandava um trabalho de equipe. Alguém teria que subir no terraço e abrir uma passagem. Eles teriam que encontrar cordas para içar o paralítico até lá e ainda descê-lo de forma segura até o local. E tudo tinha que ser de forma rápida. O importante desse relato é que nada impediu que eles realizassem esse intento e foram bem-sucedidos nisso. O paralítico foi colocado diante de Jesus.
A Bíblia não diz quem eram aqueles homens, mas deixa claro que eles foram capazes de agir com misericórdia. Três atitudes chamam a atenção nesses homens: eles foram solidários para com o sofrimento do paralítico, eles compartilharam o mesmo esforço para encontrar uma solução para o problema e eles acreditavam que em Jesus encontrariam resposta para aquela situação aflitiva. São atitudes próprias de quem tem misericórdia.
Como agem pessoas misericordiosas? Elas agem de forma solidária, em comunhão e pondo toda a esperança em Jesus. Para isso, não importa quem você é, o que você acredita, qual é o seu passado ou quais são as suas credenciais. E de nada adianta ser quem você é, acreditar no que você crê, ter a história de sucesso que você tem ou possuir os títulos que você conquistou se não for capaz de ser sensível pela aflição do outro e se não se mobilizar a agir por causa desse sentimento.
Pessoas misericordiosas são solidárias, atuam em comunhão e depositam sua esperança em Jesus. Não se esqueça disso.

domingo, 13 de novembro de 2016

Como identificar uma pessoa misericordiosa? / How to recognize a merciful person? / ¿Cómo reconocer a una persona compasiva?

“‘Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’ ‘Aquele que teve misericórdia dele’, respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: ‘Vá e faça o mesmo’” (Lucas 10.36,37).
Como reconhecer alguém que é misericordioso? Com quem ele se parece? Qual a sua identidade? A primeira resposta é que ele não se parece em nada com uma pessoa religiosa, embora a misericórdia seja a principal ênfase da religião. O sentimento religioso nasce de uma experiência de acolhimento e pertença que envolve compaixão, perdão, esperança e amor.
Quando Jesus foi indagado por um especialista em leis sobre como se deve fazer para ter uma vida plena, ele respondeu com duas perguntas: “como está escrito na lei? [...] Como você a lê?” Parece que Jesus queria que ele refletisse um pouco mais sobre sua conduta e a maneira como fazia suas escolhas. A questão que envolve a vida mais significativa tem a ver com o conjunto de saberes e de intencionalidades com que olhamos para nossa relação com Deus e o mundo. Isso orienta as leituras que fazemos tanto da Bíblia como da realidade. Trata-se, portanto, de um problema de hermenêutica.
O especialista em leis, que era um perito nos textos sagrados, acostumado a interpretá-los e a aplicar seus princípios às situações da vida, deu uma resposta inteligente. Ele disse que a lei recomenda a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E mais: estes são os maiores mandamentos da lei de Deus aos homens. E Jesus concordou com isso. E disse ainda que se ele colocasse em prática aquela maneira de ler a lei divina, viveria.
O problema é que o especialista em leis não sabia quem era o seu próximo. Ele era capaz de entender Deus, mas não sabia quem era o seu próximo. Ele conseguia entender a si mesmo, mas não sabia reconhecer seu próximo. Este é o ponto: quem é o outro por quem eu devo amar? Aí está a questão hermenêutica da misericórdia. A pessoa que consegue identificar o outro é uma pessoa misericordiosa. O contrário disso é egoísmo.
A parábola do bom samaritano exemplifica bem isso. Nessa parábola, uma pessoa foi assaltada na estrada. Os assaltantes a espancaram e a largaram nua e quase morta. Passou um sacerdote e um levita, que eram religiosos, e nada fizeram para ajudar aquela pessoa. Mas um samaritano a socorreu, levou para um lugar segurou e pagou por todo o seu cuidado. Jesus fez um jogo de interpretação: de um lado, estavam aqueles religiosos que tinham o dever de agir com misericórdia; de outro, o samaritano, que já em si era uma definição discriminatória, que era de um povo desprezado e mal visto.
E então, quem era o próximo daquela vítima? A resposta não deixava dúvidas: aquele que agiu com misericórdia. Isso deve nos levar a entender que: pessoas misericordiosas agem em favor dos mais vulneráveis; pessoas misericordiosas têm uma compreensão de Deus e da realidade a partir das vítimas; pessoas misericordiosas submetem todas as suas ações, agenda e capacidade para atender a necessidade do outro, não importa quem seja.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Eleição de Trump: democracia e retrocesso / Trump's Election: Democracy and Recession / Elección de Trump: la democracia y retroceso

A eleição de Donald Trump para a presidência da principal potência econômica mundial é a vitória de uma tendência que pode ser verificada em várias partes do mundo: a construção de um discurso populista de direita que rejeita as transformações sociais e econômicas que o mundo vem experimentando. É a vitória de alguém que tem desafiado os novos valores que vêm sendo construídos para dar conta de um mundo mais solidário e plural. O discurso reacionário de ódio encontrou ressonância em uma camada da população que teme sofrer perdas econômicas e de identidade com tais mudanças.
A sombra da tragédia de 11/9 desencadeou a explosão eleitoral do 9/11. O medo das incertezas falou mais alto. Isso não é o fim do mundo. Mas sãos os sinais do fim do mundo tal como o conhecemos até agora. O levantamento das forças de extrema direita e conservadoras no mundo inteiro é uma consequência de algo maior, que tem a ver com a crise pela qual o capitalismo global passa.
Uma nova classe média que luta para sobreviver se sente ameaçada pelas mudanças de valores e crescente transferências dos centros de poder. O que mais importou nessas eleições não foi o programa de governo, mas o resgate da dignidade perdida e a reafirmação dos valores tradicionais que estão ameaçados. A campanha foi marcada por pronunciamentos inflamados, em que predominou o ódio e o descontentamento com ações mais à esquerda que vinham desagradando a um setor da população pouco ouvido: a tal classe média.
O eleitor de Trump é branco, de classe média e evangélico/protestante. Quem votou em Trump tinha uma certa intencionalidade, que é de demonstrar que a maneira como as mudanças vêm acontecendo provoca medo e insegurança. É preferível aliar-se a alguém que tenha um discurso voltado pela defesa de valores tradicionais e resgate da identidade nacional do que em alguém que simbolize aquilo que provoca as incertezas deste tempo. Mesmo que seja alguém deplorável. E foi o que aconteceu nas eleições norte-americanas: o eleitor conservador votou em Trump, com seu discurso reacionário, e rejeitou Hillary, com seu discurso da política do sistema vigente. Só a história julgará se esse ato foi acertado.
Em sintonia com os resultados da eleição norte-americana, acontecem outros movimentos no mundo: a vitória da direita na Argentina, a resistência de direita na Venezuela, o golpe jurídico-parlamentar no Brasil, a vitória do “não” no referendo do acordo de paz na Colômbia, a crise dos refugiados, o fenômeno do Brexit, o enfraquecimento da liderança de centro-esquerda na Alemanha, os ataques terroristas na Europa, para citar alguns.
A crise do capitalismo é global, mas os seus efeitos são localizados. O capitalismo demonstra sinais de fracasso com o crescimento das desigualdades sociais no mundo e a consequente concentração de renda. Daí as políticas internacionais penderem entre o livre comércio e as práticas protecionistas, entre a garantia do direito das minorias e o fortalecimento das ideias liberais, entre o atendimento da necessidade dos mais vulneráveis e a construção de barreiras para impedir o acesso aos centros de poder.
A sociedade construída sob a égide do capitalismo vai ruindo aos poucos. O conceito de estado nacional também vai demonstrando seu caráter autenticamente burguês e liberal. O mundo é um grande navio à deriva em mar desconhecido. Os instrumentos para retomar o rumo são complexos e as manobras para reorientar a navegação são trabalhosas. E a gente vai descobrir logo, logo que isso não é tarefa para um só. Porém, ainda vai levar um tempo para a tripulação entender que estamos todos no mesmo barco, que o resgate dele depende do empenho e da consciência de cada um (Foto: Larry Smith/EPA).

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O milagre que restaura a vida / The miracle that restores our life / El milagro que restaura nuestra vida

“[...] pois as suas misericórdias são inesgotáveis” Lamentações 3.22
A principal característica da personalidade divina apresentada em toda a Bíblia é a misericórdia. Ao contrário do que se possa pensar, a Bíblia apresenta Deus como alguém que é misericordioso desde o começo até o fim. Dá para entender isso ao olhar para a natureza e perceber seu cuidado em toda a criação.
Nas Escrituras, o sentido de misericórdia tem a ver com uma força, marcada pelo amor, que age sobre as atitudes das pessoas quando estas se afastam do propósito divino, quando a infidelidade prevalece e quando se tenta afirmar a ilusão de que se pode viver sem Deus. Esta força atua naqueles momentos em que a pessoa se sente fragilizada pelo sentimento de culpa, ao se dar conta de que não é capaz de cuidar de suas próprias angústias. É nessa ora que surge o clamor pela misericórdia divina, que se dá na expectativa do perdão e do acolhimento.
Moisés lembrava-se disso em suas orações: Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado [...]” (Êxodo 34.6,7). Mesmo quando aqueles a quem tanto ama agem de forma infiel e se desviam por caminhos que os distanciam mais e mais, Deus sempre faz com que sua compaixão e seu amor generoso acalmem sua ira. Por isso o poeta cantou: “Pois a sua ira só dura um instante, mas o seu favor dura a vida toda” (Salmos 30.5).
O amor e a justiça são as duas formas através das quais a misericórdia divina se manifesta. O amor é o modo como Deus nos atrai para si. O profeta lembra bem isso: “Eu a amei com amor eterno; com amor leal a atrai” (Jeremias 31.3). Mas é em justiça que ele se relaciona conosco, com o ser humano e com o mundo. Sua misericórdia é maior que seu senso de justiça e é o que a orienta. “[...] A misericórdia triunfa sobre o juízo!” (Tiago 2.13).
A misericórdia não só identifica quem é Deus como também marca a vida das pessoas que são alcançadas por ela. Ela gera vida e cria uma relação de identidade com Deus. Não há ninguém que tenha sido alcançado pela misericórdia divina que não experimente também uma transformação pessoal que lhe impulsione a uma vida de libertação.
Tomás de Aquino afirmou que “é próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência”. Por essa razão, podemos afirmar que a misericórdia é um mistério. Ela revela Deus e promove nova vida aos que são acolhidos por seu amor. É o caminho que une Deus e os homens, visto que restaura a alegria de ser amado apesar de sermos pecadores, de ser acolhido apesar de nossa condição de perdidos, de ser encorajado apesar de nossos muitos temores.
A maior expressão da misericórdia divina foi a sua revelação na pessoa de Jesus Cristo. Foi assim que se referiu Zacarias quando recebeu a visita de Maria, grávida, em sua casa: “Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo [...] para mostrar sua misericórdia aos nossos antepassados e lembrar sua santa aliança” (Lucas 1.68 e 72). Essa ideia de que a misericórdia nos visitou para trazer salvação é a maior mensagem que alguém pode ouvir. Jesus é a encarnação da misericórdia divina. Ou, em outras palavras, “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”, conforme o Papa Francisco afirmou.
O mundo carece de misericórdia. A contemporaneidade conquistou uma situação de conforto e bem-estar através da ciência e da tecnologia que poderia lhe garantir segurança e felicidade. Porém, a humanidade nunca esteve tão perdida, insegura e desorientada. Só a misericórdia pode curar corações feridos, restaurar relacionamentos destruídos, resgatar sonhos esquecidos, renovar a esperança perdida e refrigerar almas cansadas. Ela pode nos curar e libertar de toda angústia e temor.
De fato, experimentar a misericórdia divina nos traz cura e libertação, mas também nos habilita a oferecer essa mesma misericórdia a pessoas que necessitam dela. Jesus ordenou: “Sejam misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lucas 6.36). Uma grande tragédia é a possibilidade de existirem cristãos que não sejam capazes de serem misericordiosos. Se alguém que diz ser um seguidor de Cristo, mas não é capaz de exercer misericórdia, esse tal engana-se a si mesmo e é um escândalo para a vida em comunhão.

sábado, 29 de outubro de 2016

Legado protestante: celebração dos 499 anos da Reforma / Protestant legacy / Herencia protestante

O conceito de igreja protestante se refere às denominações que se originaram da Reforma Protestante, seja diretamente ou como consequência do movimento iniciado por Martinho Lutero. O protestantismo, enquanto movimento de transformação da igreja no Ocidente, se deu em um contexto de mudança radical pelo qual passava a cultura ocidental com o fim da Idade Média e o início da Modernidade.
A Reforma Protestante aconteceu em 1517, na Alemanha, como uma reação a algumas doutrinas e práticas do cristianismo ocidental, representado pelo catolicismo romano. Em 31 de outubro daquele ano, Martinho Lutero fixou 95 teses na porta da capela do castelo de Wittenberg para convocar pessoas interessadas em discutir temas relativos à salvação, especialmente com respeito a práticas de indulgência e penitência.
Lutero teve a intenção clara de empreender a reforma da igreja, suas ações e seu discurso indicavam isso. Afinal a instituição de seu tempo não era um bom exemplo para o próprio cristianismo, dominada por um apego extremo ao dinheiro e ao poder. Isso quer dizer que a igreja de sua época era tomada por toda sorte de corrupção e problemas morais.
A essência do pensamento protestante encontra-se na definição que engloba cinco pontos fundamentais: “sola fide, sola scriptura, solus Christus, sola gratia, soli deo gloria”, expressões em latim para afirmar aquilo que caracterizava o movimento. O propósito era afirmar a natureza da igreja como realizadora da missão de Deus no mundo.
Embora as muitas denominações protestantes que existem hoje possam divergir em aspectos doutrinais, litúrgicos e até morais, as igrejas desse segmento cristão carregam consigo um legado comum, que consiste em três pontos fundamentais. São eles:
Sacerdócio universal de todos os crentes – a ênfase do protestantismo não está no clero, mas no chamado missionário que cada crente possui. Ele propõe uma valorização da vida em comunhão.
A autoridade das Escrituras – a fonte de orientação da fé protestante é a interpretação das Escrituras, que se dá de forma livre e por mediação do Espírito Santo. Ele propõe um retorno à Bíblia.
Justificação somente pela graça – a salvação não depende de ações humanas, mas tão somente da graça revelada em Jesus Cristo, que apresenta a todos perante Deus justificados de todo pecado. Ele propõe uma nova perspectiva salvífica.
Entretanto, o que há de mais comum na fé protestante, e que remete a um diálogo com as diferentes expressões cristãs, é o reconhecimento de que a misericórdia divina alcançou a humanidade e é o que desperta a mensagem que a igreja tem a comunicar para os dias atuais.
Ser protestante é ser um cristão que não se deixa limitar por formas predefinidas estabelecidas por entidades religiosas. Trata-se de uma espiritualidade que se dá para além do templo, para além do domingo e para além do clero. Que se realiza através de uma pastoral voltada para os mais vulneráveis e uma atuação missional diante das necessidades do mundo.
Há um lema da Reforma que tem sido muito lembrado, que é: “uma igreja reformada sempre se reformando”. Esse lema nos remete à situação de tensão em que se dá a atuação cristã no mundo. Ao mesmo tempo em que não dá para engessar formas e modelos, não dá para abrir mão do essencial da mensagem do evangelho. Ao mesmo tempo em que é preciso repensar as circunstâncias históricas e culturais de expressão da fé, é preciso também reconstruir um discurso que dialogue com a contemporaneidade.
Enfim, ao chegar ao seu quinto centenário, a Reforma Protestante tem muito a comemorar, como também tem muito a se questionar. Penso que não será possível fazer isso apenas no âmbito das denominações protestantes, embora não possa acontecer sem o engajamento delas. Penso que isso demanda um diálogo franco e aberto, na esfera pública, a fim de que se possa encontrar caminhos para que a fé cristã se torne relevante num mundo secularizado.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Deus ludens / God plays / Un Dios que juega

“... dia a dia eu era o seu prazer e me alegrava continuamente com a sua presença” (Provérbios 8.30)
Tomás de Aquino disse certa vez que Deus brinca, que ele cria brincando. A ideia de um Deus ludens, que brinca, que é bem-humorado, que cria brincando, remete a uma concepção de mundo que desperta a noção de que também devemos encarar a realidade pelo viés de uma brincadeira, com bom humor. O lúdico comporta uma compreensão do mistério e nos confronta com a realidade que Deus vê como uma brincadeira.
O aspecto lúdico do cuidado de Deus com a criação serve como um contraponto diante dos argumentos que reforçam a racionalidade do logos. A racionalidade não é apenas lógica, ela é também lúdica. O lógico e o lúdico se complementam e se realizam no agir criador de Deus.
O racional e o lúdico estão presentes na criação de tal modo que a natureza não é só logos, nem é só ludens, mas está marcada por uma logicidade atravessada por bom humor e mistério. A ideia do Deus faber, que cria como um artesão, se completa com a imagem do Deus ludens. Deus não faz uma obra por necessidade. Ele cria por prazer.
A natureza está permeada pelo lúdico e, por conseguinte, marcada pelo mistério, que se mostra como indecifrável e o imponderável. A tradição cristã já se referia à natureza da criação como resultado de uma inteligência divina, criadora e transformadora. Gregório de Nazianzo, em 390, chegou a afirmar que o Logos sublime brinca. Enfeita com as mais variegadas imagens e por puro gosto e por todos os modos o cosmos inteiro”.
Isso não nega a tese de Albert Einstein, para quem “Deus não joga dados com o Universo”. Ele brinca. O salmista diz: Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e também o Leviatã, que formaste para com ele brincar” (Salmos 104.24-26).
A criação inteira é dotada de uma capacidade para se recriar e se reinventar que é chamada de liberdade, e isso também vale para o ser humano. As narrativas da criação demonstram que, antes de criar o homem, Deus dá forma ao mundo a fim de que este acolha o humano, numa relação de parceria e de organização que se realiza através de um devir criativo que caracteriza a existência. O universo provoca a que o humano não se limite a uma representação, mas que assuma sua própria mundanidade como seu modo próprio de ser.
O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, não é um mero trabalhador que gerencia a terra ou um espectador da exuberância da natureza, mas é convidado a tomar parte dela e a construir sua existência na realidade do mundo criado. Como diria o místico mestre Eckhart, se somos criados por um “rir contagiante” somos também motivados a louvar ao criador com criatividade e alegria.
A encarnação de Deus em Cristo é o auge desse jogo da vida, através do qual Deus quer tomar parte da história do mundo, em que o eterno se faz temporal, em que o celestial se faz mundano, em que o onipotente assume a morte, a fim de que a criação tenha oportunidade de redenção, em exercício de liberdade. Um Deus que se esvazia para se tornar aquilo que não é.
Por isso o salmista canta: Regozijem-se os céus e exulte a terra! Ressoe o mar e tudo o que nele existe! Regozijem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta, cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com a sua fidelidade!” (Salmos 96.11-13). E a sabedoria em Provérbios fala de como Deus se alegra com a alegria de suas criaturas: “... dia a dia eu era o seu prazer e me alegrava continuamente com a sua presença” (Provérbios 8.30).
Tomás Aquino afirmou, por isso, que “o brincar é necessário para levar a vida humana”. Ser bem-humorado, conviver com mais riso, cultivar o lúdico e fazer piada da vida são atitudes que proporcionam uma nova visão do mundo. Há muita gente séria que está morrendo por falta de humor. A sabedoria que se alegra com o Deus ludens também diz: “Eu me alegrava com o mundo que ele criou, e a humanidade me dava alegria” (Provérbios 8.31).
Brincadeira para Deus é coisa séria. Ele é alegria do começo ao fim. Parafraseando Nietzsche, o criador leva a brincadeira a sério porque leva a sério a si mesmo. Fernando Pessoa falou, com o pseudônimo de Alberto Caeiro, do seu menino Jesus, a Eterna Criança: Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. / Ele é o humano que é natural, / Ele é o divino que sorri e que brinca. / E por isso é que eu sei com toda a certeza / Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. Um menino assim tão humano só poderia ser divino, acrescenta ele. Rubem Alves disse que Deus vê o universo como uma caixa de brinquedos. E arrematou: “Deus vê o mundo com os olhos de uma criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar”. Ainda bem. Isso quer dizer que o mundo ainda tem jeito.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Dez mandamentos para hoje / Ten Commandments for today / Diez mandamientos para hoy

O que hoje lhes estou ordenando não é difícil fazer, nem está além do seu alcance.” Deuteronômio 30.11
Os dez mandamentos são o mais antigo conjunto de preceitos morais em vigor da humanidade. Eles foram revelados (sim, eu considero o saber revelado como válido) a Moisés, o grande líder hebreu, que libertou seu povo de um longo cativeiro no Egito e o conduziu a Palestina, chamada de Canaã, a terra da promessa divina. Esse conjunto de leis serviu de regra geral para manter o povo unido durante o êxodo, como também em toda a sua formação histórica.
Eles foram recebidos como um presente divino cerca de 1.450 anos antes de Cristo. A Bíblia diz que a entrega dos dez mandamentos se deu no Monte Sinai, eles estavam gravados em tábuas de pedra. Eles são uma síntese de todas prescrições do Antigo Testamento e servem de fundamento para a moral judaica e cristã no mundo inteiro. E mais, sua observância é fonte de vida e o descumprimento de apenas um deles significa uma transgressão de todos demais.
Jesus é um exemplo de quem aplicou os mandamentos divinos à vida. Ele mesmo disse que não veio “abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir” (Mateus 5.17). Ele pediu para que o jovem rico observasse os mandamentos para que experimentasse uma vida plena. Ele disse também que obedecer aos mandamentos é a prova de amor que ele espera de todos as pessoas: Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama [...]” (João 14.21).
O cristianismo buscou uma fórmula para a aplicação dos mandamentos divinos à vida. Com base no ensino de Jesus, a igreja entendeu que toda a lei se resume na prática do amor. O amor não pratica o mal contra o próximo. Portanto, o amor é o cumprimento da lei” (Romanos 13.10), disse Paulo.
O decálogo, como eles também são chamados, encontra-se no livro de Êxodo 20.2-17, mas a sua divisão em dez preceitos tal como conhecemos no catecismo cristão atual foi elaborada por Santo Agostinho, no século IV. Mas eles não são mandamentos religiosos simplesmente, pois tratam de atitudes e valores que fazem parte da cultura de toda a humanidade.
Os dez mandamentos apontam para a nossa imperfeição e nos convidam a um esforço para colocar em prática princípios de vida em nossa relação com Deus e com o próximo. É através de sua aplicação à vida que podemos estabelecer um juízo sobre nós mesmos se estamos agindo corretamente ou não. Eles são, de fato, os “dez mais” da vida bem-sucedida.
Veja como eles se encontram na Bíblia:
1.         Não terás outros deuses diante de Mim.
2.         Não farás para ti imagem de escultura.
3.         Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.
4.         Lembra-te do dia de sábado para o santificar.
5.         Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os seus dias na Terra.
6.         Não matarás.
7.         Não adulterarás.
8.         Não furtarás.
9.         Não dirás falso testemunho.
10.     Não cobiçarás a casa ou a mulher do teu próximo.
O grande problema é que vivemos em uma época que passa por uma transformação moral sem precedentes. Alguns argumentam que nosso tempo é marcado por um relativismo moral. Porém, o que a pós-modernidade tem feito é suspeitar dos valores morais tradicionais e questioná-los à luz de um novo paradigma moral, que é o individualismo voltado para a busca do prazer ao extremo.
A sociedade contemporânea, dominada por uma pluralidade de valores e pela secularização, não aceita mais os dez mandamentos como princípios absolutos. Para cada um de seus preceitos, há uma série de argumentos que põe em questão sua validade e há também uma série de alternativas para o seu não cumprimento. E isso se dá até mesmo em meio àquelas pessoas que assumem um compromisso religioso.
A pós-modernidade não se caracteriza pelo fim da moralidade, mas é um tempo em que as pessoas lançam dúvidas sobre os padrões morais que vigoraram até então e buscam um novo sentido para a vida. Por essa razão, fico pensando acerca de quais outros princípios e valores poderiam mobilizar as pessoas em torno de uma moral que faça sentido para hoje.
Acredito mesmo que precisamos de um novo decálogo para hoje. Segue, então, uma sugestão de novos mandamentos para a pós-modernidade:
  1. Não farás da tua crença uma arma.
  2. Não desprezarás a espiritualidade do teu próximo.
  3. Lembra-te da compaixão, ela é o que te faz humano.
  4. Não explorarás o trabalho do teu próximo.
  5. Não desprezarás a família, seja qual o formato que ela tenha.
  6. Não terás preconceitos diante de ti.
  7. Não ostentarás.
  8. Não serás ganancioso.
  9. Não te envolvas em corrupção.
  10. Cuide da natureza para que a próxima geração tenha direito às mesmas condições de vida que você recebeu.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Mística e angústia em Kierkegaard / Mysticism and anguish in Kierkegaard / La mística y la angustia de Kierkegaard

A pergunta que se pode fazer de início é: existe uma mística protestante? A resposta comporta duas possibilidades: sim, na medida em que a experiência proposta pelo protestantismo consiste em uma relação de interioridade entre a pessoa e o indivíduo; nem tanto, na medida em que Lutero não é um pensador associado à mística, mas a própria reforma protestante comporta uma série de experiências místicas como se pode ver em Jacob Boehme, o pietismo a partir do final do século XVII, dos movimentos avivalistas ingleses e até do pentecostalismo no começo do século XX.
Dentre essas possibilidades da mística no pensamento reformado, é preciso levar em consideração a contribuição de Soren Kierkegaard. Em seu pensamento, o tema da angústia, e por conseguinte também do desespero, perpassa não só suas obras, mas também sua própria vida. Por essa razão podemos até afirmar que Kierkegaard é um místico da angústia. Para ele, a angústia tanto é gerada pelo pecado original como também é o último estado psicológico que dá origem ao pecado. E é nessa medida em que ele pode ser considerado como um pensador que interessa à mística. Em certo sentido, há em sua abordagem uma aproximação entre misticismo e antropologia visto que a relação com o divino não se dá por meio de um êxtase ou mesmo de um recolhimento, mas de uma busca que visa o fortalecimento do homem interior.
Soren Kierkegaard afirmou que “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade”. Se buscarmos compreender essa frase à luz da proposta de Juan M. Velasco, em El fenomeno místico, poderíamos afirmar que Kierkegaard se refere ao fenômeno que envolve a mística. Para Velasco, a mística é a “experiência no mais íntimo da pessoa de uma realidade sobre-humana”. Ou seja, vai além do que se percebe na vida comum e que se faz presente através de uma série de manifestações que a convertem em fato histórico e humano. Isso tem a ver com transcendência. A frase de Kierkegaard aponta para o fato de que há uma angustia humana pela busca de algo que está para além de nós mesmos. É o que se chama de transcendência. Não importa, neste momento, se esta busca tem a ver com o divino. O que é relevante pensar é que a transcendência é um fenômeno humano que engloba um campo de percepção.
De um modo geral, o pensamento de Kierkegaard experimentou duas fases, nas quais se pode verificar diferentes modos de se tratar a mística. Uma primeira que é fortemente marcada por seu anti-hegelianismo e o idealismo alemão, em que a temática da angústia aflora dando margem a uma mística especulativa. A existência humana não pode se deixar limitar por uma conceituação racional. Quando Sartre analisa a relação entre os dois pensadores, afirma que a diferença está na maneira de se estabelecer uma crítica do saber e na delimitação do seu alcance. Um segundo momento é marcado por suas próprias inquietações pessoais diante do paradoxo da experiência religiosa. Ele, então, elabora, uma reflexão a respeito das circunstâncias concretas e históricas em que a religião se dá. A sua preocupação principal estará voltada para o conhecimento de si e para a relação com a verdade. Nessa fase, a leitura de autores místicos se torna fundamental.
No que diz respeito à experiência mística, Kierkegaard está mais voltado para a intimidade do pensamento cristão com a vida e com os aspectos éticos que estão implicados em uma vida autenticamente cristã. A grande ousadia do cristão é ser o que é de fato diante de Deus. E isso passa por uma construção de si como imitação de Cristo, que é o modelo da singularidade humana e da existência. É, portanto, uma mística arraigada à existência, visto que a angústia e o desespero estão vinculadas visceralmente à vivência humana: a pessoa angustiada tende a voltar-se para uma interioridade e, nessa experiência, tende a encontrar Deus.
A finalidade da vida humana é procurar uma constante autossignificação e reafirmar permanentemente uma identidade de si. Trata-se de uma experiência de subjetividade que reivindica sua individualidade, mas que por isso mesmo pode se tornar causa de erros e equívocos. Mas também a pessoa pode escolher buscar viver como um herói, que procura oferecer o melhor de si. Essa busca comporta uma luta contra Deus que se dá por meio da fraqueza. Para tanto, a fé se torna um paradoxo, pois comporta o risco de equivocar-se, mas que ao mesmo tempo oferece o sentido para vida. Na vivência da fé, o indivíduo encontra-se numa relação absoluta com o absoluto.

Toda essa inquietação do pensador dinamarquês é exposta em uma intensa produção literária. Em seu diário, ele chegou a afirmar que sua vida foi produzir. Disse também que não passou um dia sequer sem escrever ao menos uma linha. Sua obra não só é vasta em termos quantitativos, mas também comporta uma variedade de estilos e de ideias. A coletânea de seus escritos foi elaborada em algumas etapas: a primeira, composta de 14 volumes de obras propriamente ditas, publicadas de 1920 a 1926; a segunda, com 20 volumes de papéis, publicada de 1909 a 1948, e a terceira consistiu em um volume de cartas publicado em 1953.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O que os evangelhos têm a nos dizer sobre quem é Jesus / What the Gospels tell us about who Jesus / Lo que nos dicen los Evangelios acerca de quién es Jesús

Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome.” João 20.31
Quem foi Jesus? Talvez ele seja a figura mais controversa de toda a história da humanidade. Historicamente, ele foi um judeu considerado herege por sua gente e uma ameaça ao poder romano que controlava a Palestina de seu tempo. O problema é que, além de uma pessoa com esse currículo, muita gente acredita que ele também é Deus.
O fato é que o nome “Jesus” mexe com o imaginário do mundo inteiro e é possível falar até de uma construção histórica de como sua imagem se tornou como a de um herói que tem resistido a dois mil anos de história e tem alcançado o mundo inteiro.
Suas primeiras testemunhas levaram um tempo para reunir suas narrativas em obras que pudessem testificar quem ele foi de fato. Os primeiros escritos, que eram coleções de pequenos relatos de seus feitos milagrosos e de breves ensinos que ele deixou, só apareceram cerca de 15 anos após sua morte na cruz.
Os evangelhos foram escritos usando fontes variadas, algumas orais e outras escritas em pequenos fragmentos. Eram pequenos textos que circulavam entre os primeiros cristãos com relatos de milagres de Jesus, aforismos que Jesus ensinou e até citações do Antigo Testamento que lembravam profecias acerca do Messias que haveria de vir. Lucas explicou que fez uma detalhada busca dessas fontes e as juntou para que servissem de orientação para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas” (Lucas 1.4). João também declarou que havia muitos desses relatos, mas que reuniu alguns para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome” (João 20.31).
Os evangelhos, nome que essas coletâneas receberam, não eram biografias propriamente, mas testemunhos sobre as impressões que Jesus causou na vida de quem teve contato com ele. Essa palavra vem do grego que quer dizer “boa notícia” e acabou se tornando um gênero literário que oferece as informações mais precisas e confiáveis que se pode ter sobre Jesus Cristo.
Em Teologia, sempre se procurou apresentar a pessoa de Jesus a partir de duas perspectivas cristológicas: uma ascendente e outra descendente. Uma que fala do Cristo do alto e outra que fala de Jesus de baixo. Uma que remete ao diviníssimo Jesus e outra que busca o humano Jesus. Uma que trata do Cristo da fé e outra que investiga o Jesus da história.
Os evangelistas não estavam preocupados com nenhuma dessas abordagens cristológicas. Aqueles que andaram, comeram e viveram com ele, o viram morrer na cruz, o reconheceram ressurreto e assistiram a sua ascensão estavam certos de que estiveram diante de uma pessoa humana extraordinária, portadora de uma mensagem libertadora e que tinha consciência de seu compromisso autêntico com um domínio que não se limita às ordens que regem uma vida secularizada e terrena. Uma pessoa que apontava para a vida além da vida, para valores que trazem dignidade e esperança para a humanidade e para uma relação com ele que indicava o sentido de viver de forma plena diante de Deus.
Foi necessário a contribuição de quatro seguidores de Jesus para falar sobre ele: dois apóstolos, um pesquisador e um aprendiz. Respectivamente, Mateus e João, Lucas e Marcos. Todos investidos da mesma intenção de oferecer um modo de compreender a vida e a mensagem de Jesus, de comunicar seus ensinos como uma boa notícia a todos e de aplicar os mesmos ensinos às situações da vida.
John Stott entende que, embora sejam quatro evangelistas, eles possuem apenas uma mensagem: a de que um Deus amoroso se compadeceu com a humanidade, encarnou-se como homem e ofereceu salvação através de Jesus Cristo. Isso demonstra que essa graça salvadora pode ser expressa de diferentes modos e ser aplicada a diferentes circunstâncias, mas revela também uma mensagem comum a todas as pessoas em todos os tempos e em todos os lugares.
Há muitas histórias sobre Jesus, algumas muito posteriores ao primeiro século. Os evangelhos canônicos, porém, são os documentos mais confiáveis sobre Jesus. Eles dão conta de que uma pessoa real viveu, agiu e deixou ensinos de forma extraordinária, de tal forma que lê-los hoje é resgatar o seu valor histórico e reencontrar uma mensagem que aponta o caminho de esperança e de transformação para a vida humana.

sábado, 3 de setembro de 2016

O discípulo amado / The beloved disciple / El discípulo amado

João é um bom exemplo de discípulo. Ele não foi chamado por seus companheiros de “o discípulo amado” à toa. Talvez isso se devesse ao fato de estar ligado ao círculo mais próximo a Jesus. Dentre os mais próximos ele era, sem dúvida, o mais chegado.
O pai de João, Zebedeu, era um importante empreendedor da pesca (Mateus 4.21) e sua mãe, Salomé, se tornou uma seguidora de Jesus e o serviu até o fim (Marcos 15.40.41). Inicialmente, João se tornou um discípulo de João Batista, mas passou a seguir a Jesus assim que seu primeiro mestre o identificou como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1.36 e 37). Ele e seu irmão Tiago abandonaram tudo para seguir a Jesus (Marcos 1.20).
Por causa do seu temperamento intempestivo e inflamado, foi chamado, junto com seu irmão, por Jesus de “Boanerges” ou “filhos do trovão” (Marcos 3.17). Ele ficou incomodado com algumas pessoas que expulsavam demônios, mas que não pertenciam ao grupo de Jesus (Marcos 9.38); ele alimentava ainda um preconceito com os samaritanos e desejou que fossem destruídos (Lucas 9.54). Também por causa de sua atitude ambiciosa, aspirava lugares de poder no Reino de Deus, ao que fora repreendido por Jesus (Marcos 10.35-37).
João esteve presente de forma marcante em todos os momentos decisivos da vida de Jesus durante seu ministério. Ele esteve junto de Jesus no monte da transfiguração (Mateus 17.1-9) e no jardim de oração (Mateus 26.36-37). Esteve presente no julgamento de Jesus (João 18.15-16), estava ao lado da mãe de Jesus durante a crucificação (João 19.26) e foi o primeiro a chegar ao sepulcro no dia da ressurreição (João 20.2-4).
João foi quem cuidou da mãe de Jesus depois da crucificação (João 19.27). Ele se tornou um importante líder da igreja iniciante, sendo conhecido como o apóstolo do amor. Após a destruição de Jerusalém, João se instalou na cidade de Éfeso e ali exerceu um grande ministério edificando igrejas e proclamando o evangelho. Sofreu perseguições, foi exilado em Patmos por um tempo, enfrentou movimentos heréticos e influenciou na formação de importantes pensadores cristãos como Policarpo, Inácio e Papias. Aos 95 anos de idade, exercia uma atividade dinâmica no cuidado com a igreja. Provavelmente veio a falecer com mais de 100 anos na cidade de Éfeso.
João encarnou a própria essência do sentido de discipulado e de missão. Em sua vida, esses dois aspectos estão profundamente implicados. Como discípulo, João pautou sua vida pelo caráter de Cristo. Ele chegou a dizer que “aquele que afirma que permanece nele, deve andar como ele andou” (1 João 2.6). Como missão, ele assumiu a tarefa de proclamar a boa notícia do Reino de Deus como a essência de sua mensagem e ação. Ele disse de forma muito enfática: “Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco[...]” (1 João 1.3).
O resultado de suas escolhas como discípulo aparecem em sua produção: ele escreveu cinco livros que hoje compõem o Novo Testamento, sendo um sobre quem era Jesus para ele, três sobre a maneira como ele entendia a vida em comunidade e um sobre sua esperança em tempos difíceis. E o resultado de sua vida no cumprimento da missão aparece em seu compromisso com o Reino de Deus: ele se comprometeu com a vida das igrejas; chamava seus companheiros de caminhada de filhinhos; por onde andou, empenhou-se pelo fortalecimento da comunhão e da prática do amor uns aos outros. As chamadas “comunidades do discípulo amado” eram no mínimo sete, na região que hoje compreende a Turquia.

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