quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Tragédia em voo da Chapecoense: a finitude e a transitoriedade da vida / Tragedy in flight of Chapecoense: the finitude and the transience of the life / Tragedia en vuelo de Chapecoense: la finitud y la fugacidad de la vida

O acidente que ceifou a vida da quase totalidade do time de futebol da Chapecoense, além de equipe técnica, jornalistas e muitos outros que o acompanhavam para a primeira partida da final da Copa Sul-Americana, é marcado por um sentido de dor e angústia que não dá para se descrever em palavras. O que fica é esse sentimento de perplexidade diante da finitude e da transitoriedade da vida, aspectos que fazemos o esforço de não levar em conta na hora de construir planos e sonhos, mas que gritam o tempo todo para lembrar da fragilidade humana, de nossa incompletude e de que não temos o controle de nossa existência.
Fico com a definição de Georges Bataille: “a morte é em certo sentido uma impostura”. Ela se disfarça e se apresenta nos espaços não desejados. Uma invasora da vida, uma intrusa em nossos projetos. Ela está sempre ali para nos trazer de volta à dura realidade que estamos num vazio, que somos detentores de um poder ilusório, que vivemos em meio ao imponderável, ao insólito, ao improvável.
A morte põe em questão nossa existência. Na medida em que só tenho uma vida para viver e na proporção em que minha consciência é regida pela memória, viver é como vaguear entre esperança e tentativas, procurando dar um passo de cada vez como um bêbado equilibrista, como quem dança na corda bamba. Somente a morte nos traz de volta ao senso de que estamos diante da incerteza, de que até aqui tudo o que fizemos foi transcender à fatalidade de uma vida sem expressão. Como disse Elis Regina: “A esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar”.
Somos sujeitos que vivem diante de uma armadilha: que nos lança o desafio de rejeitar o vazio de uma vida sem sentido, ao mesmo tempo que nos permite perceber nossa própria finitude. É o chamado para a vida eterna que se defronta com o grito “por que me abandonaste?” Nem Jesus escapou dessa agonia. Aquele que enfrentou esse mesmo dilema nos chama a uma superação. “[...] A morte foi destruída pela vitória(1 Coríntios 15.54).
Os que embarcaram naquele voo tinham um sonho de conquistar um prêmio, mas se depararam com o grande dilema do jogo da vida. 71 mortos. 6 sobreviventes. Famílias sofridas. Uma cidade perplexa. Um país em estado de tristeza. Como fazer para seguir adiante? Logo a gente descobre que ainda persiste aquela teimosia de ir além, de que viver é se abrir para o que dá esperança, de que vale a pena encarar desafios até para honrar a memória dos que se foram.
Com o trágico acidente, somos chamados à solidariedade, ao exercício da misericórdia, à compreensão de que os títulos não representam nada diante da fugacidade da vida, de que é possível imaginar um outro modo de se construir a nossa existência. É uma pausa para pensar sobre o que estamos fazendo com o que ainda nos resta da vida. Desejo aos familiares, companheiros e torcedores da Chapecoense toda a consolação que só o Espírito Santo de Deus pode dar. Desejo o mesmo para as equipes de mídia e os demais simpatizantes que acompanhavam o time. Que Deus nos console a todos.

domingo, 20 de novembro de 2016

Como pessoas misericórdias agem? / How merciful people act? / ¿Cómo actúa la gente compasiva?

“Que é mais fácil dizer: ‘Os seus pecados estão perdoados’, ou: ‘Levante-se e ande’?” (Lucas 5.23).
O mundo carece de gente misericordiosa pelo simples fato de que tais pessoas agem com misericórdia, que é o que mais se precisa. O episódio da cura do paralítico de Cafarnaum é um exemplo disso. Ele chama a atenção não por causa do milagre em si, mas pela atitude das pessoas que o conduziram até Jesus.
A história é narrada nos três evangelhos sinóticos, mas Marcos e Lucas destacam como foi que isso aconteceu. Jesus se encontrava em uma casa apinhada de gente e quatro homens levaram o paralítico até ele em uma maca. Fico imaginando o quadro: eles chegam à entrada da casa, tentam entrar, forçam passagem com a maca, mas não conseguem. Eles olham um para o outro e bolam um plano alternativo, que era colocar o paralítico no meio da sala onde Jesus se encontrava através de uma abertura no piso do terraço. Era um empreendimento trabalhoso que demandava um trabalho de equipe. Alguém teria que subir no terraço e abrir uma passagem. Eles teriam que encontrar cordas para içar o paralítico até lá e ainda descê-lo de forma segura até o local. E tudo tinha que ser de forma rápida. O importante desse relato é que nada impediu que eles realizassem esse intento e foram bem-sucedidos nisso. O paralítico foi colocado diante de Jesus.
A Bíblia não diz quem eram aqueles homens, mas deixa claro que eles foram capazes de agir com misericórdia. Três atitudes chamam a atenção nesses homens: eles foram solidários para com o sofrimento do paralítico, eles compartilharam o mesmo esforço para encontrar uma solução para o problema e eles acreditavam que em Jesus encontrariam resposta para aquela situação aflitiva. São atitudes próprias de quem tem misericórdia.
Como agem pessoas misericordiosas? Elas agem de forma solidária, em comunhão e pondo toda a esperança em Jesus. Para isso, não importa quem você é, o que você acredita, qual é o seu passado ou quais são as suas credenciais. E de nada adianta ser quem você é, acreditar no que você crê, ter a história de sucesso que você tem ou possuir os títulos que você conquistou se não for capaz de ser sensível pela aflição do outro e se não se mobilizar a agir por causa desse sentimento.
Pessoas misericordiosas são solidárias, atuam em comunhão e depositam sua esperança em Jesus. Não se esqueça disso.

domingo, 13 de novembro de 2016

Como identificar uma pessoa misericordiosa? / How to recognize a merciful person? / ¿Cómo reconocer a una persona compasiva?

“‘Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’ ‘Aquele que teve misericórdia dele’, respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: ‘Vá e faça o mesmo’” (Lucas 10.36,37).
Como reconhecer alguém que é misericordioso? Com quem ele se parece? Qual a sua identidade? A primeira resposta é que ele não se parece em nada com uma pessoa religiosa, embora a misericórdia seja a principal ênfase da religião. O sentimento religioso nasce de uma experiência de acolhimento e pertença que envolve compaixão, perdão, esperança e amor.
Quando Jesus foi indagado por um especialista em leis sobre como se deve fazer para ter uma vida plena, ele respondeu com duas perguntas: “como está escrito na lei? [...] Como você a lê?” Parece que Jesus queria que ele refletisse um pouco mais sobre sua conduta e a maneira como fazia suas escolhas. A questão que envolve a vida mais significativa tem a ver com o conjunto de saberes e de intencionalidades com que olhamos para nossa relação com Deus e o mundo. Isso orienta as leituras que fazemos tanto da Bíblia como da realidade. Trata-se, portanto, de um problema de hermenêutica.
O especialista em leis, que era um perito nos textos sagrados, acostumado a interpretá-los e a aplicar seus princípios às situações da vida, deu uma resposta inteligente. Ele disse que a lei recomenda a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E mais: estes são os maiores mandamentos da lei de Deus aos homens. E Jesus concordou com isso. E disse ainda que se ele colocasse em prática aquela maneira de ler a lei divina, viveria.
O problema é que o especialista em leis não sabia quem era o seu próximo. Ele era capaz de entender Deus, mas não sabia quem era o seu próximo. Ele conseguia entender a si mesmo, mas não sabia reconhecer seu próximo. Este é o ponto: quem é o outro por quem eu devo amar? Aí está a questão hermenêutica da misericórdia. A pessoa que consegue identificar o outro é uma pessoa misericordiosa. O contrário disso é egoísmo.
A parábola do bom samaritano exemplifica bem isso. Nessa parábola, uma pessoa foi assaltada na estrada. Os assaltantes a espancaram e a largaram nua e quase morta. Passou um sacerdote e um levita, que eram religiosos, e nada fizeram para ajudar aquela pessoa. Mas um samaritano a socorreu, levou para um lugar segurou e pagou por todo o seu cuidado. Jesus fez um jogo de interpretação: de um lado, estavam aqueles religiosos que tinham o dever de agir com misericórdia; de outro, o samaritano, que já em si era uma definição discriminatória, que era de um povo desprezado e mal visto.
E então, quem era o próximo daquela vítima? A resposta não deixava dúvidas: aquele que agiu com misericórdia. Isso deve nos levar a entender que: pessoas misericordiosas agem em favor dos mais vulneráveis; pessoas misericordiosas têm uma compreensão de Deus e da realidade a partir das vítimas; pessoas misericordiosas submetem todas as suas ações, agenda e capacidade para atender a necessidade do outro, não importa quem seja.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Eleição de Trump: democracia e retrocesso / Trump's Election: Democracy and Recession / Elección de Trump: la democracia y retroceso

A eleição de Donald Trump para a presidência da principal potência econômica mundial é a vitória de uma tendência que pode ser verificada em várias partes do mundo: a construção de um discurso populista de direita que rejeita as transformações sociais e econômicas que o mundo vem experimentando. É a vitória de alguém que tem desafiado os novos valores que vêm sendo construídos para dar conta de um mundo mais solidário e plural. O discurso reacionário de ódio encontrou ressonância em uma camada da população que teme sofrer perdas econômicas e de identidade com tais mudanças.
A sombra da tragédia de 11/9 desencadeou a explosão eleitoral do 9/11. O medo das incertezas falou mais alto. Isso não é o fim do mundo. Mas sãos os sinais do fim do mundo tal como o conhecemos até agora. O levantamento das forças de extrema direita e conservadoras no mundo inteiro é uma consequência de algo maior, que tem a ver com a crise pela qual o capitalismo global passa.
Uma nova classe média que luta para sobreviver se sente ameaçada pelas mudanças de valores e crescente transferências dos centros de poder. O que mais importou nessas eleições não foi o programa de governo, mas o resgate da dignidade perdida e a reafirmação dos valores tradicionais que estão ameaçados. A campanha foi marcada por pronunciamentos inflamados, em que predominou o ódio e o descontentamento com ações mais à esquerda que vinham desagradando a um setor da população pouco ouvido: a tal classe média.
O eleitor de Trump é branco, de classe média e evangélico/protestante. Quem votou em Trump tinha uma certa intencionalidade, que é de demonstrar que a maneira como as mudanças vêm acontecendo provoca medo e insegurança. É preferível aliar-se a alguém que tenha um discurso voltado pela defesa de valores tradicionais e resgate da identidade nacional do que em alguém que simbolize aquilo que provoca as incertezas deste tempo. Mesmo que seja alguém deplorável. E foi o que aconteceu nas eleições norte-americanas: o eleitor conservador votou em Trump, com seu discurso reacionário, e rejeitou Hillary, com seu discurso da política do sistema vigente. Só a história julgará se esse ato foi acertado.
Em sintonia com os resultados da eleição norte-americana, acontecem outros movimentos no mundo: a vitória da direita na Argentina, a resistência de direita na Venezuela, o golpe jurídico-parlamentar no Brasil, a vitória do “não” no referendo do acordo de paz na Colômbia, a crise dos refugiados, o fenômeno do Brexit, o enfraquecimento da liderança de centro-esquerda na Alemanha, os ataques terroristas na Europa, para citar alguns.
A crise do capitalismo é global, mas os seus efeitos são localizados. O capitalismo demonstra sinais de fracasso com o crescimento das desigualdades sociais no mundo e a consequente concentração de renda. Daí as políticas internacionais penderem entre o livre comércio e as práticas protecionistas, entre a garantia do direito das minorias e o fortalecimento das ideias liberais, entre o atendimento da necessidade dos mais vulneráveis e a construção de barreiras para impedir o acesso aos centros de poder.
A sociedade construída sob a égide do capitalismo vai ruindo aos poucos. O conceito de estado nacional também vai demonstrando seu caráter autenticamente burguês e liberal. O mundo é um grande navio à deriva em mar desconhecido. Os instrumentos para retomar o rumo são complexos e as manobras para reorientar a navegação são trabalhosas. E a gente vai descobrir logo, logo que isso não é tarefa para um só. Porém, ainda vai levar um tempo para a tripulação entender que estamos todos no mesmo barco, que o resgate dele depende do empenho e da consciência de cada um (Foto: Larry Smith/EPA).

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O milagre que restaura a vida / The miracle that restores our life / El milagro que restaura nuestra vida

“[...] pois as suas misericórdias são inesgotáveis” Lamentações 3.22
A principal característica da personalidade divina apresentada em toda a Bíblia é a misericórdia. Ao contrário do que se possa pensar, a Bíblia apresenta Deus como alguém que é misericordioso desde o começo até o fim. Dá para entender isso ao olhar para a natureza e perceber seu cuidado em toda a criação.
Nas Escrituras, o sentido de misericórdia tem a ver com uma força, marcada pelo amor, que age sobre as atitudes das pessoas quando estas se afastam do propósito divino, quando a infidelidade prevalece e quando se tenta afirmar a ilusão de que se pode viver sem Deus. Esta força atua naqueles momentos em que a pessoa se sente fragilizada pelo sentimento de culpa, ao se dar conta de que não é capaz de cuidar de suas próprias angústias. É nessa ora que surge o clamor pela misericórdia divina, que se dá na expectativa do perdão e do acolhimento.
Moisés lembrava-se disso em suas orações: Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado [...]” (Êxodo 34.6,7). Mesmo quando aqueles a quem tanto ama agem de forma infiel e se desviam por caminhos que os distanciam mais e mais, Deus sempre faz com que sua compaixão e seu amor generoso acalmem sua ira. Por isso o poeta cantou: “Pois a sua ira só dura um instante, mas o seu favor dura a vida toda” (Salmos 30.5).
O amor e a justiça são as duas formas através das quais a misericórdia divina se manifesta. O amor é o modo como Deus nos atrai para si. O profeta lembra bem isso: “Eu a amei com amor eterno; com amor leal a atrai” (Jeremias 31.3). Mas é em justiça que ele se relaciona conosco, com o ser humano e com o mundo. Sua misericórdia é maior que seu senso de justiça e é o que a orienta. “[...] A misericórdia triunfa sobre o juízo!” (Tiago 2.13).
A misericórdia não só identifica quem é Deus como também marca a vida das pessoas que são alcançadas por ela. Ela gera vida e cria uma relação de identidade com Deus. Não há ninguém que tenha sido alcançado pela misericórdia divina que não experimente também uma transformação pessoal que lhe impulsione a uma vida de libertação.
Tomás de Aquino afirmou que “é próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência”. Por essa razão, podemos afirmar que a misericórdia é um mistério. Ela revela Deus e promove nova vida aos que são acolhidos por seu amor. É o caminho que une Deus e os homens, visto que restaura a alegria de ser amado apesar de sermos pecadores, de ser acolhido apesar de nossa condição de perdidos, de ser encorajado apesar de nossos muitos temores.
A maior expressão da misericórdia divina foi a sua revelação na pessoa de Jesus Cristo. Foi assim que se referiu Zacarias quando recebeu a visita de Maria, grávida, em sua casa: “Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo [...] para mostrar sua misericórdia aos nossos antepassados e lembrar sua santa aliança” (Lucas 1.68 e 72). Essa ideia de que a misericórdia nos visitou para trazer salvação é a maior mensagem que alguém pode ouvir. Jesus é a encarnação da misericórdia divina. Ou, em outras palavras, “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”, conforme o Papa Francisco afirmou.
O mundo carece de misericórdia. A contemporaneidade conquistou uma situação de conforto e bem-estar através da ciência e da tecnologia que poderia lhe garantir segurança e felicidade. Porém, a humanidade nunca esteve tão perdida, insegura e desorientada. Só a misericórdia pode curar corações feridos, restaurar relacionamentos destruídos, resgatar sonhos esquecidos, renovar a esperança perdida e refrigerar almas cansadas. Ela pode nos curar e libertar de toda angústia e temor.
De fato, experimentar a misericórdia divina nos traz cura e libertação, mas também nos habilita a oferecer essa mesma misericórdia a pessoas que necessitam dela. Jesus ordenou: “Sejam misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lucas 6.36). Uma grande tragédia é a possibilidade de existirem cristãos que não sejam capazes de serem misericordiosos. Se alguém que diz ser um seguidor de Cristo, mas não é capaz de exercer misericórdia, esse tal engana-se a si mesmo e é um escândalo para a vida em comunhão.

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