domingo, 29 de janeiro de 2017

Esperança como transgressão / Hope as transgression / La esperanza como transgresión

“Descanse somente em Deus, ó minha alma; dele vem a minha esperança” Salmos 62.5
A esperança é uma virtude de quem consegue enxergar além das circunstâncias. Ela é da ordem da transgressão. Crer que algo é possível apesar das circunstâncias contrárias não é um exercício de otimismo ou de pensamento positivo. Isso depende de uma disposição diferente de se esperar.
Não é à toa que a esperança é uma das três virtudes teologais. Juntamente com a fé e a caridade, a esperança é uma força que o Espírito Santo confere por graça ao que crê a fim de aumentar a confiança e fortalecer a que seja perseverante. Para quê? Primeiro, para que creiamos na veracidade das promessas divinas, mesmo quando tudo parece contrário. Segundo, para que pratiquemos a vontade divina, mesmo quando tudo parece dar errado.
A fé é o fundamento sobre a qual descansa a esperança, e a esperança alimenta e sustenta a fé. A esperança renova e vivifica a fé sempre de novo e cuida para que sempre de novo se levante mais forte, para perseverar até o fim. Como disse Calvino: “Se faltar a esperança, por mais que falemos da fé de forma genial e eloquente, podemos estar certos de que não temos nenhuma!”
A esperança, portanto, é o que nos encoraja a seguir adiante. Ela está presente quando somos capazes de rir na hora da dor, quando nos sentimos realizados na hora da perda, quando buscamos forças em meio à luta, quando mudamos o rumo em meio à crise. Nasce de nossas carências e nos impulsiona para a resistência contra o que nos impede de seguir em frente.
O poeta francês Charles Péguy cantou certa vez:
O que me espanta, diz Deus, é a esperança.
Eu fico pasmo.
Essa pequena esperança que parece uma cousa de nada. [...]
A Esperança é uma meninazinha de nada. [...]
Entretanto é essa meninazinha que atravessará os mundos.”
A esperança é mais do que espera. Paulo Freire dizia que a esperança de que precisamos é a do verbo “esperançar”, e não a do verbo “esperar”. É ela que restaura o sonho e aponta um sentido. Por ela, um novo horizonte surge a cada instante que se avança. Ela é a expectativa da conquista, é o que proporciona esclarecimento e libertação. Sem esperança, a vida é só espera, viver não faz sentido algum, perde-se o horizonte e não há motivos para seguir adiante.
A falta da esperança é só perda. Enquanto a esperança nasce de nossas carências, a falta dela vem da alienação. A esperança encoraja, a falta dela cria uma relação de dominação. A esperança transforma, a falta dela favorece exploradores.
É preciso ter esperança neste tempo em que há tanto desespero. É preciso desejar como Paulo: Que o Deus da esperança os encha de toda alegria e paz, por sua confiança nele, para que vocês transbordem de esperança, pelo poder do Espírito Santo” (Romanos 15.13).

domingo, 15 de janeiro de 2017

Inabalável: relação entre fé e cultura a partir de Daniel / Unshakeable: considerations about faith and culture from Daniel / Inamovible: la relación entre la fe y la cultura en Daniel

Daniel, você é muito amado. [...]” (Daniel 10.11). 
Daniel é um exemplo de alguém que viveu a fé em seu tempo de maneira autêntica. Há uma relação entre fé e cultura e entre fé e realização histórica que não é levada em consideração pela maioria das pessoas que segue uma religião. A vida de Daniel, porém, conforme narrada na Bíblia, demonstra que ele enfrentou suas circunstâncias pessoais dentro de uma compreensão de seu tempo sendo perseverante e determinado em tornar-se um instrumento nas mãos de Deus para influenciar seus contemporâneos.
Daniel era um judeu de uma família nobre. Quando os caldeus dominaram a cidade de Jerusalém, em 605 a.C., ele e alguns outros jovens foram levados como escravos para Babilônia. O rei dos caldeus, Nabucodonosor, ordenou que fossem escolhidos aqueles mais capazes para que fossem preparados para servi-lo em seu palácio. E Daniel, juntamente com seus três companheiros Hananias, Misael e Azarias, estava entre os escolhidos.
Tomando por base a narrativa bíblica, dá para entender que Daniel passou o resto da sua vida naquela mesma região. Ele enfrentou várias situações que colocavam em risco sua vida, mas permaneceu firme em suas convicções de fé. Apesar de todas as provações, conseguiu desempenhar funções importantes dentro da dinâmica da vida social até o fim do império babilônico, que veio a cair diante do império medo-persa em 539 a.C. Mesmo na velhice, Daniel ainda serviu por alguns anos no governo desse novo império mantendo uma fé inabalável.
Sua fidelidade e determinação em fazer a vontade de Deus fizeram com que Daniel fosse reconhecido como um homem “muito amado” (Daniel 10.11). No livro do profeta Ezequiel, Daniel é mencionado como um dos grandes exemplos de justiça e retidão em meio a todo cenário do cativeiro babilônico, alguém tão digno como os exemplos de Noé e Jó (Ezequiel 14.12 e 20).
Essas suas credenciais permitiram que ele fosse usado pelo Senhor para ser portador de uma mensagem que trazia uma nova perspectiva história a respeito dos propósitos de Deus para a humanidade. Essa mensagem permanece viva e atual.
Através de uma linguagem simbólica, retirada da cultura de seu tempo, fica claro que ele apresenta o curso da história, apontando significados e esquadrinhando seu desenvolvimento até um final de acordo com um propósito divino. Sua narrativa demonstra que o Deus que criou o universo e a vida humana está no controle do tempo e conduz a história para um fim conforme a sua vontade.
Claro que isso não acontece sem que haja uma tensão entre os fatos históricos e as promessas divinas, entre os fenômenos culturais e a fé. O problema é que somos herdeiros de uma teologia que construiu uma separação entre revelação divina e realização histórica, entre fé e cultura. Porém, é preciso compreender que a as promessas divinas se realizam historicamente e que a fé deve ser expressa no contexto de uma cultura. E o livro de Daniel nos ajuda a compreender isso.
Para Daniel, a história humana e as manifestações sobrenaturais do poder de Deus estão inter-relacionadas. Por conta disso, podemos assumir uma atitude mais otimista diante de crises, catástrofes, conflitos e dominações. Essa compreensão bíblica da histórica nos ajuda a desenvolver a esperança e a ter uma mensagem encorajadora para aqueles que sofrem a opressão, a injustiça, a perda e a exploração.
Daniel nos ajuda a entender que a realização histórica necessita de um horizonte, caso contrário será sempre compreendida apenas como uma sucessão de acontecimentos. Os propósitos divinos apontam para um sentido da história. Por essa razão, o livro bíblico é considerado como parte de uma literatura apocalíptica, que aponta para o fato de que Deus está no controle da história, subvertendo relações de poder e trazendo seu reino aos homens a fim de que seus propósitos eternos se cumpram.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Qual o sentido da vida? Refletir sobre a existência como forma de resistência / Reflection on existence as resistance / La reflexión sobre la existencia como una forma de resistencia

Quando a gente passa por situações que demandam muito estresse, angústia e desilusão, é muito comum se perguntar qual o sentido da vida. Qual o sentido da vida? Eu tenho uma resposta boa e uma ruim para essa pergunta. A ruim é que a vida não tem um sentido. O que faz a vida ter sentido é viver. A boa é que, na medida em que vivemos, a vida vai ganhando novos contornos a partir das relações que construímos.
Não acho legal ficar procurando o sentido da vida, até porque o bom da vida está ligado às coisas que construímos e que sonhamos. Perguntar pelo sentido da vida é levantar a questão antiga da filosofia sobre a existência. Ela tem a ver com a nossa realidade individual concreta, que não dá para ser explicada ou demonstrada, mas que pode ser descrita e a partir da qual podemos estabelecer juízos de valor.
Aristóteles já dizia que a existência é um atributo do ser. É o fato de que você é aquilo que é. O problema é que a existência está vinculada imediatamente a uma essência. Ou seja, você é o que é na medida de suas circunstâncias.
A Modernidade procurou relacionar o sentido da existência à racionalidade. Descartes afirmou “Penso, logo existo” como se a existência dependesse do pensamento ou como se a base para se compreender a existência dependesse da razão. Espinosa, crítico de Descartes, disse que a existência implica um esforço. O que chamou de conatus ou o esforço de existir é uma característica do próprio ser. Hegel, de novo, tentou demonstrar que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real. Mas ficaram de fora os aspectos imponderáveis de nossa existência.
Foi Kierkegaard quem se revoltou contra essa crença moderna de que a razão pode dar conta de todos os aspectos relacionados à vida, sejam eles morais, religiosos, políticos ou estéticos. Para Kierkegaard, a existência humana é marcada por três estágios que envolvem uma tentativa de resgatar a integridade do ser humano como uma pessoa que é capaz de fazer escolhas, que se angustia e que também se desespera. O primeiro estágio é o estético, aquele que é orientado pela aparência e pelo desejo numa busca de uma afirmação de si. O segundo estágio é o ético, que é orientado pelo valor e pela moral, procurando encontrar seu lugar na vida social. Porém, esses estágios não são suficientes para dar conta de nossa própria condição, resultando em um vazio. Para dar conta desse vazio, Kierkegaard propõe o salto da fé, que é assumir o que se é diante de Deus. É em meio a esse vazio que o homem encontra formas de rever seus valores e suas relações. Quando chega a esse ponto, encontra-se no estágio que Kierkegaard chama de religioso, que é aquele em que se torna possível reconhecer o valor de sua própria existência.
Heidegger, já no começo do século XX, entendeu que a existência é marcada por uma busca de sentido, um problema que nunca foi resolvido na filosofia. Ele construiu a noção do ser-aí, que é conhecido pela palavra alemã “dasein”. Embora o ser não possa ser definido em sua essência, é possível compreendê-lo a partir de sua relação recíproca como ser-no-mundo. Nesse sentido, a existência humana é dotada de um certo privilégio, pois é cercada por um senso de responsabilidade e de liberdade. A existência humana é marcada pela nossa mundanidade, pela nossa capacidade de transcendência, pela nossa temporalidade e pela nossa finitude. O ser humano está sempre diante da possibilidade de tornar-se algo, de projetar-se para além do que é, de encontrar vínculos entre o que já foi e o que ainda será, e de realização em meio à sua própria incompletude.
Por essa razão, Sartre afirmará que a existência precede e determina a essência. É, portanto, a nossa realidade que não dá para ser reduzida a uma mera explicação causal, mas que dá para ser percebida e analisada a partir de suas situações concretas. Nós nunca encerramos em nós mesmos a totalidade, mas estamos sempre abertos a novas possibilidades. Como disse o filósofo existencialista cristão Gabriel Marcel: “Existir é coexistir”.
O salmista se depara com esse dilema e registra: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes?” (Salmos 8.3,4). Não há uma razão lógica para isso. Está acima de todas as razões, como diria Miguel de Unamuno. Para o filósofo espanhol, enquanto houver vida em nós, se quisermos que ela possa valer a pena, não devemos procurar justificação alguma para nosso estado de luta interior, de incerteza e de anseio: “é um fato e basta”.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Novos começos, pequenos começos / New beginnings, small beginnings / Nuevos comienzos, pequeños comienzos

“Ora, quem despreza o dia das coisas pequenas?” (Zacarias 4.10 RAA).
O começo de um novo ano é sempre tempo de fazer novos planos. Começar um novo curso, aprender um novo idioma, fazer aquela dieta tantas vezes adiada, economizar dinheiro para realizar sonhos, praticar exercícios físicos. Enfim, não passam de planos. Muitos não resistem à primeira semana e, quando chegarmos a dezembro, vamos ver que a maior parte deles não conseguiu ser concretizada.
Se você fizer um balanço da sua vida, vai verificar que todo ano é a mesma coisa: fazemos planos e praticamos muito pouco do que gostaríamos. Por que a maioria dos nossos alvos para o Ano Novo não são colocados em prática e a maior parte deles é até esquecida? Basicamente porque é próprio de nossa condição humana fazer planos. Somos pessoas com abertura para o futuro.
Embora não possamos prever o futuro, temos condições de idealizá-lo. Para isso, dois aspectos são determinantes: nossos desejos e nossa memória. Os desejos orientam nossa vida. A memória nos lembra nossas carências. Os desejos nascem das carências, a memória as apontam. Desejo e memória estão inter-relacionados de tal modo que um não existe sem o outro.
Por causa dos desejos, nos tornamos capazes de sonhar. Afinal, por que você quer um carro melhor, um celular novo, conhecer um lugar diferente, comprar um bem, desfrutar de um serviço de qualidade? Somos seres dotados de desejo e pessoas que desejam sonham.
Por causa da memória, reportamos ao nosso passado, lembramos daquilo que nos constitui como pessoas. Nossa história de vida, nossas vitórias e fracassos, nossos temores e até o que nos aflige passam em nosso pensamento o tempo todo como um filme repetido, lembrando aquilo que temos mais necessidade.
Por causa do desejo e da memória, cada passo dado na direção do futuro se torna tanto um desafio quanto uma conquista. O desejo nos encoraja a dar um novo passo e a memória nos ajuda a fazer ajustes. O desejo aponta a direção do próximo passo, a memória nos orienta a passada. O desejo nos impulsiona, a memória registra a caminhada. O desejo constrói planos, a memória lhes dá significados.
Por isso que cada pequeno começo é dotado de uma pluralidade de sentidos. Todo grande projeto depende de um pequeno começo ligado a um sonho e a uma história. Por essa razão, o profeta indaga: “quem despreza o dia das pequenas coisas?”
Certa vez, Elias se refugiou no monte Carmelo, escondendo-se da seca e da fúria do rei Acabe. Havia a promessa de que Deus enviaria a chuva, mas no céu não havia uma nuvem sequer. Elias pediu ao seu ajudante para vigiar o céu, até que este disse: “uma nuvem tão pequena do tamanho da mão de um homem está se levantando do mar” (1 Reis 18.44). Então Elias mandou avisar ao rei para que se apressasse, pois a chuva já estava chegando.
Assim são os pequenos começos. Eles significam um passo dado de cada vez em direção às grandes realizações. Não vale a pena desprezá-los.

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